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Lé-Lé bem-te-vi e seu amigo Levi

Seridião Correia Montenegro*

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Nesse período de seca inclemente, que castiga todo o sertão cearense, papai e mamãe bem-te-vi resolveram migrar para a cidade, com seu pequeno filhinho Lé-Lé. Sairiam em busca de uma árvore onde pudessem viver em paz, encontrar alimentos e reconquistar o direito de entoar as sonoras sinfonias de seu mavioso canto. Queriam fugir da ameaça constante que rondava o seu lar, materializada pela presença frequente e devastadora de alguns meninos malvados, armados com pedras ou mortíferos estilingues. 
Na madrugada de uma segunda-feira, para eles o dia mais calmo da semana, partiram. Sobrevoaram casas e terrenos, contornaram pequenos prédios e imensos arranha-céus, até que o cansaço lhes deu a opção de construir um bonito ninho numa solitária árvore que encontraram no quintal de uma antiga casa, cercada de grandes edificações e de imensos paredões de concreto, no bairro mais aristocrático de Fortaleza, a Aldeota.
Em poucos dias, construíram um belo e aconchegante ninho, seu novo lar. Mamãe e papai bem-te-vi saíam todas as manhãs, ao raiar do dia, em busca de alimentos, deixando seu irrequieto filhinho no conforto e segurança do imponente abrigo.
Aproveitando o silêncio da madrugada, Lé-Lé, enquanto aguardava o retorno dos pais, se divertia pulando de galho em galho e aprendendo a dominar a fantástica arte da acrobacia, segredo indispensável à sobrevivência de um pássaro, no mundo agressivo, tumultuado e ameaçador da cidade grande.
Em pouco tempo, Lé-Lé bem-te-vi, o jovem pássaro, se tornou exímio aeronauta. Tendo herdado de seus antepassados a virtude da coragem, demonstrava, a cada novo dia, a audácia dos que gostam de enfrentar os desafios. A princípio circulava em torno da árvore frondosa que lhe servia de abrigo, mas esses breves passeios se tornaram, cada vez mais, monótonos, tediosos e sem graça. Depois de tomar alguns sustos provocados pelo barulho das buzinas e pelo ronco dos motores dos automóveis, no vai e vem sem fim do caótico tráfego urbano, decidiu enfrentar a volúpia das alturas. Passou a alçar novos e desafiadores voos, em direção ao azul celeste do céu primaveril, sem baralho, sem sustos, sem sobressaltos, numa sucessão de momentos de suave navegação, evitando sempre a excessiva proximidade dos gigantescos e monumentais edifícios, que, aqui e ali, revelavam a presença de seres humanos, neles aparentemente enclausurados.
Um dia, entretanto, Lé-Lé avistou, através da transparência de uma janela de vidro, alguém diferente, impecavelmente vestido de branco, com um sorriso cativante nos lábios e um brilho sedutor no olhar, a observá-lo. Não parecia ser como aqueles meninos maus que tanto infernizaram a vida de sua família. Mesmo num exame superficial de quem ainda era muito jovem e inexperiente, acreditou tratar-se de alguém que faz do bem o seu principal apanágio de vida.
Aproximou-se atento e, depois de lhe observar mais de perto, o olhar, os gestos e o sorriso, e de ouvir sua voz serena e agradável, resolveu pousar na parte externa da janela de vidro que os separava. Descansou um pouco e retribuiu, a seu modo, o carinho que o homem lhe demonstrava: entoou, a princípio, de forma insegura, aquele que foi o seu primeiro canto, que logo se transformou num trinado melodioso, que pareceu agradar ao seu novo amigo. Assim, homem e pássaro ficaram se comunicando por alguns minutos, até que se ouviu uma voz que chamava – Dr. Levi! Ficou pensativo e logo chegou à conclusão que não era mera coincidência a semelhança dos nomes: o seu Lé-Lé bem-te-vi; o dele Levi. Certamente, teriam muitas outras coisas em comum.
Lembrando que já era tarde, entoou mais um canto e seguiu no rumo de casa.
Nos dias seguintes, no mesmo horário, passou a visitar seu novo amigo. Imaginava como seria bom se não houvesse aquela janela de vidro. Sua vontade era pousar na mão do seu amigo Levi, que parecia querer acariciá-lo, passeando com os dedos na superfície do vidro.
Com tão pouco tempo de vida, Lé-Lé, o jovem bem-te-vi, encheu seu pequeno coração de alegria ao descobrir que há muitas coisas importantes e indispensáveis à construção da felicidade de todos os seres viventes. Uma delas é o direito à liberdade, que lhe foi revelado ao mergulhar nas ondas do vento, nos seus desafiadores voos diários. A outra, a amizade e o amor, sem dúvida a própria razão de viver, que se manifestaram pelo carinho recebido desse grande ser humano chamado Levi Torres Madeira.
*Escritor, membro da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza. É autor dos livros: O Expresso do Passado; Expresso para o Futuro; Discursos - Memórias do Coração e Crato - Princesa do Cariri, Capital da Cultura, Oásis do Sertão

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