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'Meninos em fúria': leia trecho do livro que fala sobre punk no Brasil

G1
"Existiu um ano em que o rock explodiu no Brasil. Existiu um ano em que tudo mudou no Brasil." O trecho está na abertura do livro "Meninos em fúria" (Alfaguara), que acaba de ser lançado.

Com o subtítulo "E o som que mudou a música para sempre" (leia um trecho abaixo) e escrita por Marcelo Rubens Paiva, do best-seller "Feliz ano velho", dentre outros, a obra é coassinada por Clemente Tadeu Nascimento, mais conhecido como Clemente, guitarrista e vocalista da banda Inocentes. Ele também é integrante da atual formação da Plebe Rude.

O livro faz um registro da história do rock brasileiro, especialmente do surgimento do punk em São Paulo, no incicio dos anos 1980. Os autores escrevem suas memórias a partir de 1982 (voltando e avançando no tempo). Tem muita história sobre bandas clássicas do estilo, como Ratos de Porão e Cólera, por exemplo.

Mas, através de relatos muito pessoais, ele busca atrair também quem não gosta do gênero musical. Marcelo Rubens Paiva e Clemente usam as próprias experiências para falar de uma época em que o país passava por intensas mudanças políticas, sociais e econômicas.

Embora o subtítulo cite que aquele som mudou a música para sempre, a ideia para ser mostrar que algo além disso também se transformou.

Leia, abaixo, o trecho de abertura de 'Meninos em fúria':

Marcelo Rubens Paixa (à esquerda) e Clemente, autores do livro 'Meninos em fúria' (Foto: Divulgação)Marcelo Rubens Paixa (à esquerda) e Clemente, autores do livro 'Meninos em fúria' (Foto: Divulgação)
"Eu tinha só 22 anos. Os dois últimos, anos de pânico. Eu aguentava? Eu tinha que aguentar! Era a vida. Era a porra da minha vida, o que tinha restado de mim. Se você tem menos de vinte anos, tem fúria no corpo todo. Se tem mais, tem que fazer alguma coisa para se livrar dela. Uma dica: lutar. Que se conjuca da mesma maneira que 'criar'.

Nos anos 1960, a juventude combateu com pedras, coquetéis molotov, pichações, negou-se a se enquadrar no padrão do adulto-pai, anunciou que era proibido proibir. Parte dela pegou em armas. Nos anos 1980, outra juventude viu que a luta armada que acabou no terrorismo não dava em nada. O futuro não tinha solução. O desecanto virou cultura. O rock, uma arma. Desprezávamos a fama e o consumo. Hoje soa esquisito. Acredite, existiu uma época em que criticávamos a fama, o culto à personalidade, o consumo excessivo que, para nós, trazia à tona as mazelas e as injustiças sociais do capitalismo.

Quem tinha menos de vinte anos era contra o sistema.
É, teve um tempo em que a gente zoava da banda de rock que tinha o próprio avião com logo na porta, do artista que vendia sua música para propaganda de banco, refrigerante, jeans, protetor solar, cerveja. E se o cara ousasse aparecer com cara de otário num comercial de TV, vendendo um produto de uma empresa americana, passávamos uma borracha na sua reputação. Desprezo. Sua obra ia para o lixo dos traidores. A alta cultura não se misturava com a ralé publicitária. O rock 'n' roll é rebelião, não consumo!
Teve um tempo em que fabricávamos a própria roupa porque éramos contra a sociedade do desperdício. A banda The Clash fez um disco triplo e exigiu que custasse o preço de um disco unitário, porque queria que a classe operária o escutasse. O disco homenageava um movimento guerillheiro da América Central, o sandinista. Teve um tempo em que as ideias presentes nas músicas eram mais importantes do que a harmonia, a mensagem era mais importante do que o solo virtuoso do guitarrista. Eram palavras cantadas com poucas notas, que propunham um novo mundo, uma nova perspectiva, uma revolução.
E ninguém gritava 'Sai do chão!' ou fazia questão que o público 'saísse do chão', nem 'Mãos pra cima!'. Se quisessem sair do chão, sem não quisessem, era com eles. A massa é o indivíduo. Cada um recebe a mensagem como quer. Éramos contra a massificação. O verdadeiro rock não apenas um ritmo, uma dança: entretenimento. Poir isso ele é único. O rock verdadeiro é uma militância. O rock é movimento.
Existiu um ano em que o rock explodiu no Brasil.
Existiu um ano em que tudo mudou no Brasil.
Em 28 de agosto de 1982, no palco do Salão Beta da PUC, universidade católica da Zona Oeste de São Paulo, no palco que ficava dois metros acima da plateia sem cadeiras, de piso de madeira que reverberava quando todos pulavam, como um terremoto com efeito surround, nesse palco entrou primeiro a bateria, tum-tá-tum-tá, depois o baixo deu aquele solo batucado de quatro notas, marca da época, então a guitarra solou. Era uma performance da qual ninguém tirava os olhos e que ressucitava todos os mortos dos cemitérios da área metropolitana. Uns trezentos punks e não punks começavam a dançar. Eu me encaixava na categoria não punk. A banda aumentava o ritmo. E o refrão:
— Pânico...

E nós respondemos:
— ... Em esse pê!

A banda:
— Pâ-ni-co...

E nós respondemos:
— .. E m esse pê!

A banda:
— Pan-ki...

Todos juntos:
— ... Em esse pê!

Eu tinha só 22 anos de pânico. Eu tinha que aguentar! Era a porra da minha vida, o que tinha restado de mim. Eu precisava juntar uns pedaços. Meses sem sair de uma cada de hospital: lesão medular incompleta. Meses arrebentado numa clínica de reabilitação física, sem saber para onde ir, o que seria de mim, quem seria eu, como seria meu corpo. Meses já numa cadeira de rodas. Que estresse! Pânico em mim!

As sirenes tocaram, as rádios avisaram que era pra correr. As pessoas assustadas mal informadas se puseram a fugir sem saber do quê...

Sem saber do quê, por quê. Lutar, lutar, lutar. Com vinho barato. Com pinga de garrafão. Com uísque barato, o mais barato do mercado. Não tínhamos dinheiro. Era uísque nacional batizado ou cachaça de garrafão ou vinho de garrafão ou vodca pura que colocávamos goela abaixo. Em copos de plástico. Era a bebida que podíamos comprar. O gelo era a única coisa de origem conhecida naquele coquetel: uma torneira qualquer.

Tudo misturado com a dose certa de um pó vagabundo, errado, batizado, umedecido pelo contato do seu invólucro com a pele, mocozado na cueca, no saco, na meia, num sutiã, numa calcinha – quando rolava, porque pó ainda era caro. Se não rolava, tinha benzina à venda em qualquer farmácia. Onde se vendia Artane, ou cloridrato de triexifenidila, um remédio para Parkinson. Ou éter. Ou o velho baseado de maconha velha com fungos vindo do Paraguai ou de Pernambuco, misturado com estrume. Década terrível. Fugir. Drogas nojentas!

O jornal, a rádio, a televisão, todos os meios de comunicação. Neles estava estampado o rosto de medo da população. Pânico em SP, pânico em SP, pa-ni-cô em esse pê."

Imagem presente no livro 'Meninos em fúria', sobre o surgimento do punk no Brasil, especialmente em São Paulo; em destaque, Clemente, da banda Inocentes, coautor da obra com Marcelo Rubens Paiva (Foto: Divulgação)Imagem presente no livro 'Meninos em fúria', sobre o surgimento do punk no Brasil, especialmente em São Paulo; em destaque, Clemente, da banda Inocentes, coautor da obra com Marcelo Rubens Paiva (Foto: Divulgação)
A banda punk Inocentes em imagem de 1986 reproduzida no livro 'Meninos em fúria'; ao centro, Clemente, que assina a obra com Marcelo Rubens Paiva (Foto: Divulgação)A banda punk Inocentes em imagem de 1986 reproduzida no livro 'Meninos em fúria'; ao centro, Clemente, que assina a obra com Marcelo Rubens Paiva (Foto: Divulgação)

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