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Extremamente direto, livro expõe a singular e intensa trajetória de João Gordo

por Antonio Laudenir - Repórter


João Gordo, o líder do Ratos de Porão, narra sua história em livro escrito com André Barcinski
Mesmo inexistindo uma rigorosa cartilha de como deve ser o diálogo com o outro, manda o bom senso que essa comunicação seja direta, sem floreios. Usar mais palavras do que o necessário pode transparecer um expediente contrário ao de informar. Quando o assunto é falar sobre você mesmo, a exigência de não tornar-se uma figura prolixa é fundamental. João Gordo entende bem este riscado.
Lançado na quarta-feira (23), a biografia "Viva la Vida Tosca" é o último ataque deste paulista. Com meio século de vida nos lombos, João Francisco Benedan (52) esmiuça feridas do passado, relembra instantes de pura insanidade e divide um pouco do seu atual convívio familiar. A construção desta conversa segue a passos fieis a cartilha do universo punk: "o papo é reto".
A empreitada contou com a pena e dedicação do jornalista André Barcinski. Entre outras publicações, o escritor que já tinha trazido ao mundo as biografias "Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão" (1998) e "Sepultura: toda a história" (1999). Foi a escolha direta do artista. Além da competência de Barcinski, a parceria reafirma uma amizade iniciada em 1992, época onde atuaram no finado jornal Notícias Populares, de São Paulo.
Narrativa
A leitura apresentada reforça e cria o ambiente de uma conversa franca entre amigos. Este espírito domina as 320 páginas do livro e uma fluidez natural toma conta do contato com o registro. A perspectiva cronológica é linear. Narrado em primeira pessoa, cada fato, situação e acontecimento é costurado cirurgicamente. Independente da descrição de momentos barra pesada ou cômicos, os fatos são transmitidos e divididos sem delongas.
Para elaborar esse monólito de confidências, João referencia outro peso pesado cheio de histórias para contar, o carioca Sebastião Rodrigues, o Tim Maia (1942-1998). O ponto de partida seria a biografia "Vale Tudo - O som e a fúria de Tim Maia", de Nelson Motta.
"A ideia foi fazer um livro que me lembrasse a experiência da bio do Tim Maia. Quando eu tive contato com o livro, era como se aquela voz dele narrasse o livro. Queria o mesmo com esse. Se você botar um Ratos para tocar e ler, vai ouvir a minha voz", comenta João.
Diferente dos maneirismos usuais à reconstrução do passado, constantes em muitas biografias, os detalhes das informações são econômicos e intensamente visuais. Ao longo de 11 capítulos, a vida de João é resgatada sem divagações e a informalidade do texto é uma característica rica ao material.
As desventuras do músico e apresentador começam com as origens italianas do pai e as raízes nordestinas da mãe. Os parentes maternos já desenham, de cara, a história de superação da família. Foram três meses entre o Ceará e o Porto de Santos. No fim da viagem, dos 15 filhos do avô materno, apenas cinco sobreviveram.
"Filho do Golpe Militar", pois nascera em 13 de maio de 1964, e cria da "Geração Televisão", a infância pobre na Vila Gustavo é descrita com detalhes. Estão nestas memórias desde Roberto Carlos cantando "Lobo Mau" na TV; aos vizinhos bizarros, como o Seu Tonico, que vivia a espiar do portão de casa as meninas do bairro que vinham da escola.
Sobre recuperar os dados do passado, João aponta que tudo só foi possível por conta da memória afiada. "Minha lembrança do passado é muito forte, chega a ser fotográfica, essa coisa de ter três anos de idade, de não esquecer estas coisas. Foram muitas horas de entrevista. Teve alguns momentos barra pesada que me deprimiram, mas, relembrar tudo isso, a maior parte do tempo foi só risada. Ele (Barcinski) se divertiu", detalha.
Na escola, a perseguição dos outros alunos por conta do sobrepeso eram constantes. Em casa, a dificuldade de João, desde o início, foi a relação com o pai. Policial Militar, homem de poucas palavras e extremamente rígido, as surras eram uma realidade. Todo este cenário de violência reverberaria de maneira profunda na vida do vocalista do Ratos de Porão.
Torto
Para complicar e ao mesmo tempo salvar, o rock invadia a vida do garoto da Vila Gustavo. A lista incluia Kiss, Black Sabbath, Queen. Ramones, posteriormente, tocariam fogo em tudo. Os discos "Ramones" (1976), "Leave Home" e Rocket to Russia (1977) mudariam sua vida.
Outros sons punks começaram a fazer parte do repertório, Generation X, 999 e Sham 69 eram devorados com afinco. Se a escola já era um território selvagem e constrangedor, a coisa degringolou. João se apresentava rasgado, camisa presa com alfinete. O rock, aponta, lhe daria identidade. "De repente, eu não era mais o gordinho bobão". Se a moral dava uma melhorada, em compensação a notas despencavam. Mais uma repetência fez o pai levar toda a família para o interior. O destino de João foi Angatuba.
Ratos
A entrada no Ratos de Porão é detalhada como uma metralhadora. Todos os instantes de batalha e persistência do grupo estão ali contidos. Para quem já assistiu o documentário "Guidable: A Verdadeira História do Ratos de Porão" (2008) muito dos "causos" narrados por João já são conhecidos. Porém, o interesse sobre os primeiros anos de atividade da banda recai sobre a evolução da cena punk de São Paulo. O olhar do entrevistado lança um apontamento crítico em meio ao caos quer era fazer esse tipo de som nos anos 1980.
A fase junk dos integrantes, os giros por outros países, as barcas furadas e o contato com outras bandas emolduram este capítulo. Confusões, briga e sangue compõem estas histórias. "Tenho muita sorte de estar vivo. Tive muitas vezes próximo de morrer. Sou um sobrevivente. Não podia imaginar que hoje estaria casado por 16 anos e com filhos. O livro, mais que tudo, é sobre superação. É sobre um doidão que virou pai de família", finaliza o senhor João Gordo.
Discografia básica
Top 5
A convite do Caderno 3, João Gordo lista seus 10 álbuns favoritos do punk, estrangeiro e nacional
Gringos
"Ramones" (1976) - Ramones
"Never Mind the Bollocks, Here's the Sex Pistols" (1977) - Sex Pistols
"Tell Us The Truth" (1978) - Sham 69
"Greatest Hits Vol. 1" (1980) - Cockney Rejects
"Why?" (1981) - Discharge
Nacionais
"Grito Suburbano" (1982) - Compilação das bandas Cólera, Inocentes e Olho Seco
"Sub" (1983) - Compilação das bandas Cólera, Ratos de Porão, Psykóze e Fogo Cruzado
"Crucificados pelo Sistema" (1984) - Ratos de Porão
"Tente Mudar o Amanhã" (1985) - Cólera
"Nada é Como Parece" (1989) - Lobotomia
Trecho
"Sou um sobrevivente. Sobrevivi à obesidade mórbida, sobrevivi ao pó, sobrevivi aos punks e Carecas que queriam me matar, sobrevivi à polícia (?) e, principalmente, sobrevivi ao meu pai, superando todas as nossas diferenças. Lógico que, se não fosse ele, minha vida teria tomado outro rumo, talvez hoje eu fosse um operário infeliz na Vila Gustavo ou, quem sabe, até um PM. A opressão me fez mergulhar de cabeça no rock. Fui pra onde o vento me levou?"
"Meu pai era ausente e violento, mas eu sou um pai presente e carinhoso. Pego os meus filhos na escola, ponho eles pra dormir, estudo com eles, faço tudo por eles".
"A verdade é que eu tava de saco cheio do movimento punk. A cena punk em São Paulo era tosca. Só tinha gangue, bandido, trombadinha, a noção de ideologia era rudimentar, ninguém sabia nada sobre anarquia ou política. Os mais inteligentes e informados ali eram o Clemente, o Ariel, o Redson e o Fabião. O resto só queria saber de bagunça, de brigar, de cheirar cola e ouvir Sex Pistols e Ramones. Era tosco demais".

Diário do Nordeste

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