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"Crônicas - volume um" volta às prateleiras com a força da escrita de Bob Dylan

Compromissos acordados antes do anúncio da premiação impediriam Robert Allen Zimmerman de estar presente na Academia Sueca, para receber o Nobel de Literatura de 2016. Pelo menos foi essa a justificativa dada pelos porta-vozes do cantor, compositor e músico, que se notabilizou com o nome de Bob Dylan. A ausência - mesmo educadamente explicada - somou-se à demora em comentar o anúncio da escolha de seu nome e, sem que ele fosse o responsável, aos questionamentos que se seguiram a sua inesperada eleição, em prejuízo de favoritos como Philip Roth e Haruki Murakami.
Voluntários ou dados em circunstâncias fora de seu controle, estes movimentos foram vistos como imposturas do artista, como desdém por uma instituição tradicional, outra prova de sua bem documentada arrogância. É uma interpretação arriscada, que carece de informações que a sustentem, sob pena de ser uma agressão movida à antipatia pelo artista em questão.
A maneira como Dylan (não) recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pode ser, de forma mais sóbria, inscrita em outro padrão do comportamento do artista: a imprevisibilidade, que, em seus melhores momentos, é um jeito de contrariar expectativas. Seus destinos, desconhecidos como num de seus versos mais famosos, não se prestam às artes divinatórias.
A voz
Há aqueles de menor importância para a sua história, como a constatação de que ninguém esperava que Dylan lançasse não apenas um, mas dois discos de intérprete. Isso aconteceu nos dois trabalhos de estúdio mais recentes do cantor - "Shadows in the night" e "Fallen angels", ambos com repertório todo composto de pérolas e obscuridades do cancioneiro de Frank Sinatra, para deixar ainda mais pasmados aqueles não devidamente acostumados à escrita por linhas tortas de Dylan.
Sinatra é uma escolha nada óbvia, seja pelas diferenças de estilo, de interpretação e dos tipos de canção por ele preferidas. Para exemplificar o descompasso entre os dois gigantes da música popular dos EUA, basta inverter os termos: você consegue imaginar o Velho cantando algo como "Blowin' in the wind", política e em sintonia com um mundo em violenta transformação? E mesmo se você tomar uma canção de amor de Dylan, "Girl from the North country", por exemplo, com seu espírito "outlaw', caipira, não é o tipo de coisa que Sinatra, com sua pose classuda, nova-iorquina, levaria para os palcos.
O som
Em suas memórias ("Crônicas: volume um", ali, nas primeiras páginas), Bob Dylan rememora seu encontro com John Hammond, caçador de talentos da era de ouro da gravadora Columbia. "(Ele) explicou que me via como alguém na linha de uma longa tradição, a tradição do blues, jazz e folk, e não como alguma maravilha modernosa inovadora. Não que houvesse qualquer coisa inovadora acontecendo. As coisas estava bem apáticas na cena musical americana no final dos anos 1950 e começo dos anos 1960. As rádios populares estavam em uma espécie de imobilidade, recheadas de entretenimento vazio. Isso foi nos anos anteriores àqueles em que os Beatles, The Who e os Rolling Stones sopraram vida nova e excitação para dentro do rádio", escreve o compositor, recuperando episódios que remontam os anos anteriores à sua ascensão.
A novidade de Dylan foi, de certa maneira, transformar o velho em novo e de fazer os jovens se interessarem por uma estética fora de moda. Em sua justificativa para a escolha do nome do compositor, a Academia Sueca defendeu que Dylan merecia o Nobel "por criar novas expressões poéticas dentro da grande tradição americana da canção".
Não é um raciocínio equivocado, mas ao falar em tradição (palavra contaminada pelos significados negativos de tradicional e tradicionalismo), a Academia Sueca acaba não evidenciando a inquietude do artista que premiou. David Bowie ganhou o apelido de Camaleão, mas poderia emprestá-lo a Dylan que dele faria bom uso.
Os discos de Bob Dylan se sucedem e, em seu conjunto, criam uma obra que se movimenta. Folk, rock, country, pop, americana, blues, jazz são gêneros que o artista conquistou, indo além do que se esperava dele.
Um conjunto de episódios marcantes na trajetória artística de Dylan ilustra bem sua capacidade de reinvenção e de chocar os públicos mais conservadores. No começo de 1965, o músico gozava do prestígio conquistado com dois álbuns que o colocaram na dianteira de um revival da música folk - "The Freewheelin' Bob Dylan", de 1963, e 'The Times They Are a-Changin", do ano seguinte. Em março, Dylan reaparece com um novo pacote de canções inéditas. As quatro canções do lado B (tratava-se então de long plays) de "Bringing It All Back Home" estavam dentro do esperado, com um Dylan trovadoresco ao violão. O "problema" estava nas sete músicas do lado A, com o artista acompanhado de uma banda elétrica e se acercado da estética do rock. Um clássico como "Maggie's Farm" já foi mal visto e rejeitado.
A hostilidade das partes mais sectárias do público e dos pares de Dylan cresceu com o lançamento de "Like a rolling stone", um rock que entraria do disco seguinte do artista, "Highway 61 Revisited", ainda mais eletrificado, que chegou às lojas no fim de agosto. Os shows eram tensos. "Judas!", a plateia o insultava, agredida por versões ainda mais rápidas daqueles rocks que a desagradavam. Dylan foi em frente, conquistou novos públicos e recuperou o respeito dos antigos. Uma história como a de 1965 soa apenas ridícula.
Diário do Nordeste

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