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Cineasta indiano M. Night Shyamalan discute transformações humanas no suspense "Fragmentado"

Entre os princípios básicos do suspense está o enfrentamento do desconhecido, que naturalmente mexe com a representação do que tememos no mundo real. O cineasta indiano M. Night Shyamalan escolheu esse gênero como sua principal especialidade, ampliando as percepções do público por meio de histórias instigantes e criativas que se desenvolviam até chegar em uma grande revelação.

Mas isso foi lá atrás, especialmente quando lançou "O Sexto Sentido" (1999) e "Sinais" (2002), época em que virou promessa para o cinema de gênero. Depois, Shyamalan colecionou erros imperdoáveis em sua filmografia, mas mostrou que poderia voltar aos holofotes com "A Visita" (2015), seu melhor filme nos últimos 13 anos.

Agora, com "Fragmentado" o cineasta tenta manter a fama de bom contador de histórias, ainda que guarde certa amargura em não manter o nível de excelência de sua obra anterior.

Dessa vez, Shyamalan acompanha a vida de Kevin, interpretado por James McAvoy, homem diagnosticado com 23 personalidades que coexistem de maneira burocrática. Cada uma tem seu tempo para "vir à luz", manifestando-se organizadamente no mesmo corpo. Uma delas, no entanto, sequestra três adolescentes e dá início a um plano relacionado a uma nova identidade que está prestes a emergir.

O diretor ambienta "Fragmentado" em uma típica história de terror adolescente, que se passa pelo olhar das três garotas vítimas de um homem. Estão lá os olhos arregalados e os gritos de pânico, enquanto a câmera de Shyamalan trata de erotizar o medo do desconhecido e a incerteza de um desfecho.

Mas se em suas principais obras a grande revelação final é o trunfo para conquistar o público, em "Fragmentado" não há um grande ponto de virada. Isso porque a história segue de forma didática e até autoexplicativa demais para mostrar suas intenções.

Um dos recursos que prova isso é o uso constante de flashbacks da vida de Casey, vivida por Anya Taylor-Joy, que tentam justificar suas ações futuras. Casey se lembra constantemente dos abusos familiares que viveu ainda criança, o que a transformou em uma garota introspectiva, mas corajosa. Mais centrada do que suas colegas que também foram encarceradas, Casey se disponibiliza a entrar no jogo do sequestrador e se relaciona com algumas das personalidades de Kevin em busca de alternativas para sair ilesa da prisão.

Transformações

Os flashbacks também ajudarão a resolver alguns problemas internos de Casey, como é visto nos momentos finais do longa-metragem. E aí está o principal acerto de Shyamalan em "Fragmentado": olhar para o passado com objetivo de trazer novas perspectivas de futuro, mesmo que isso signifique levar sofrimento aos personagens. As transformações, muitas vezes, precisam ser provocadas para que as pessoas consigam sair do lugar que acreditam ser delas em busca de novos caminhos.

Não só Casey se transforma, como Kevin é o próprio símbolo da transformação. Interpretado com segurança por McAvoy (mesmo que o roteiro ofereça personagens caricatos como a criança bobalhona e o gay afetado), o personagem está constantemente mudando de identidade e, mais ainda, trazendo à tona uma nova representação para si.

É como se a nova personalidade de Kevin fosse um ser mais evoluído do que o restante, o que representa a ambição humana de querer estar sempre à frente de seu tempo, de buscar versões melhores de si mesmo. No caso, uma versão mais violenta, quase um anti-herói de quadrinhos.

O próprio diretor parece também se transformar, olhando para seu passado instável como realizador para projetar seu futuro. Ainda que "Fragmentado" seja mediano como obra, pode-se dizer que Shyamalan continua um diretor esperto, fazendo de sua câmera a principal arma para revelar os personagens ao público e para eles mesmos.

O que pesa, por outro lado, é ele ter aberto mão de um suspense mais visceral e inteligente, em troca de uma abordagem simples demais e com menos camadas do que as 23 de seu protagonista.

Shyamalan também ambienta "Fragmentado" dentro de seu próprio universo cinematográfico, correlacionando sua persona já conhecida em filmes anteriores. Um jogo egocêntrico, claro, mas que vai deixar vários fãs do diretor em êxtase ao final da projeção. Entrar em maiores detalhes sobre isso seria estragar essa surpresa que é mais simbólica do que surpreendente.

Drama

Ao tentar tirar do drama situações de suspense em troca de situações de horror mais gráficas, como tem acontecido frequentemente nos últimos anos - a exemplo dos ótimos "The Babadook" (2014), "Corrente do Mal" (2014), "Boa Noite, Mamãe" (2014), "A Bruxa" (2015) e "Hush: A Morte Ouve" (2016), para citar alguns -, Shyamalan escorrega por não trazer nenhuma grande cena, nem dramática, nem de suspense. O filme inteiro é permeado por uma sensação de desconfiança, mas nunca causa o impacto devido, emocional ou visual.

Dentro do teor autoexplicativo demais, que impede a participação do público de maneira mais ativa na percepção do filme, Shyamalan traz na figura da terapeuta de Kevin (interpretada pela ótima Betty Buckley), explicações contraditórias para os acontecimentos, sem falar na forma como ela controla a personalidade real do protagonista (a cena do bilhete é surreal, no mau sentido mesmo).

Ainda a assim, o filme segue sustentado na construção e na relação entre os personagens para manter o interesse na trama. É curioso ver a força de Casey explodir no decorrer da projeção, assim como os conflitos internos de Kevin.

Também é duvidosa a maneira como uma das identidades de Kevin se enxerga espelhada em Casey, em certo momento da trama, quando entra a discussão da pureza (ou impureza?) humana. A fragmentação da jovem não é a mesma do protagonista e pode abrir espaço até mesmo para questionar um possível teor machista e violento da história.

As dores de Kevin e Casey são diferentes e o mais acertado é enxergá-los como vítimas que tentam lidar com seus próprios problemas: Kevin, um homem que sofre com suas múltiplas faces; Casey, uma jovem que sofre dentro de casa.

Do segundo para o terceiro ato, "Fragmentado" até ameaça trazer uma grande mudança, mas não acontece. E é exatamente essa a sensação final, de uma proposta que tem potencial, embora não seja nova, mas tão morna que é possível ficar indiferente.

Não é mais um erro na carreira de Shyamalan, mas tampouco um novo "Corpo Fechado" (2000) ou "A Visita" (2015). O cineasta afirmou que considera "Fragmentado" seu trabalho mais desafiador até agora e talvez justamente por isso não tenha conseguido chegar ao máximo de excelência que a história prometia.

Mais informações:

"Fragmentado" (Split, EUA, 2016), de M. Night Shyamalan. Com James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Haley Lu Richardson e Jessica Sula. Confira salas e horários no Zoeira

Diário do Nordeste

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