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Obras clássicas de Thomas More e Friedrich Schlegel são exemplares para o romance de ideias

Contar histórias para, por meio delas, expressar um conjunto de ideias acerca do tempo é um traço cultural humano cujas origens se perderam no tempo. Qual tradição religiosa, das mais antigas conhecidas, deixou de transmitir sua sabedoria, seus interditos e seus valores recorrendo a relatos exemplares? A literatura também, quando já era reconhecida por este tome e assumida como um dos ramos do narrar, dedicou-se à alquimia de construir um ser, com corpo e alma, mas difíceis de serem distinguidos.

Toda grande obra literária, apesar dos protestos da crítica que se opõem às leituras interpretativas (num sentido pobre, de elucidação de uma mensagem cifrada), revela algo além do que diz ao pé da letra. Um exemplo superlativo neste sentido é a poesia e o teatro de William Shakespeare. Por vezes, o tema é mais conhecido do que a própria trama.

Shakespeare, contudo, não era filósofo que se valia da literatura - ou, mais precisamente, da ficção - para apresentar e sustentar suas ideias. Contudo, não faltaram aqueles que tomaram este caminho. Nestes casos, quase sempre, a expressão literária ficou em segundo plano. Leitores que se limitam aos manuais nem sempre saberiam dizer que "Utopia", de Thomas More (1478-1535), por exemplo, não é um tratado filosófico convencional, mas uma ficção.

Comparação

A obra de Thomas More chegou aos 500 anos em 2016, não exatamente atual, mas ainda como referência incontornável no que tocam as utopias - palavra que nomeia o trabalho e que fez sua estreia nele. Em tempos politicamente sombrios, com a Europa acossada pelo terrorismo e pelos nacionalismos xenófobos; os EUA sob um governo populista; e o Brasil desorientado de tantas ida, voltas e revoltas, o pensamento de More, de um lugar ideal, colocou-se como obra que se recomendava - e se necessitava de - releitura.

A editora mineira Autêntica lançou, no mês passado, uma edição comemorativa de "Utopia". Bilíngue (latim-português), o livro foi traduzido por Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, pesquisador da Universidade de Coimbra. O trabalho é preciso e, sem trair o texto, ajuda o leitor, que não se depara com um português rebuscado e arcaizante.

"Utopia" é uma narrativa de viagem, gênero que remonta à Antiguidade Clássica. A ação se dá em torno de um navegante português Rafael Hitlodeu, dos tempos que a nação Ibérica disputava o domínio dos mares e havia chegado a territórios "desconhecidos". Hitlodeu critica as instituições inglesas e, em contraposição a elas, apresenta aquelas que observou na ilha de Utopia, sociedade próxima do ideal, erguida sobre o conhecimento disponível na época.

O modelo de More seria, mais tarde, aproveitado por outros escritores e filósofos. Entre os autores de ficção, está Rodolfo Teófilo. Em "O reino de Kyato", ficção científica dos anos 1920, ele descrevia esta ilha ideal - oposta aos hábitos e valores "degenerados" que o autor vir no Ocidente e, para ser mais preciso, no Brasil.

Teoria e prática

"Fragmentos sobre poesia e literatura/ Conversa sobre poesia", de Friedrich Schlegel (1772-1819), recém publicado pela Editora Unesp, segue um caminho semelhante ao de "Utopia" - a despeito da diferença de temas.

"Conversa sobre poesia" (1800) é um romance escrito por um dos fundadores do romantismo alemão, no qual um encontro de jovens é animado por reflexões em torno da poesia. A inspiração de Schlegel era o próprio grupo de intelectuais que abrigava ele e o irmão, August Schelgel.

A edição brasileira se destaca por combinar esta obra a uma coleção de fragmentos do autor, que permaneceu inédita até os anos 1950. O fragmento era uma forma tipicamente romântica, instantâneos de pensamento em torno de temas variados.

Nos de Schlegel, lê-se, entre outras assertivas, que o romance não deve ser filosófico apenas em parte, mas inteiramente reflexivo.

Livro

Fragmentos sobre poesia e literatura (1797-1803) / Conversa sobre poesia

Friedrich Schlegel

Tradução: Constantino Luz de Medeiros

Editora Unesp

2016, 600 páginas

R$ 84
Image-0-Artigo-2210507-1

Utopia: edição bilíngue (Latim-Português)

Thomas More

Tradução: Márcio Meirelles Gouvêa Júnior

Autêntica

2017, 256 páginas

R$ 59,80
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Diário do Nordeste

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