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Educar é responder ao grito de quem quer aprender a viver

A educação pode ser comparada com a experiência que se faz quando se está perdido e alguém ensina o caminho

Cursar medicina exige enorme dedicação. Seu processo seletivo é o mais disputado e esse clima de competitividade permanece durante os seis anos de curso, uma vez que ao final haverá disputa de vagas para as especialidades médicas.
Em dezembro de 2016, uma das revistas científicas médicas mais conceituadas no mundo (JAMA. 2016) publicou que em média 27% dos estudantes de medicina apresentam sintomas de depressão. Esse tema voltou agora à tona quando só nos primeiros três meses deste ano ocorreram quatro tentativas de suicídio no quarto ano do curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP), o mais disputado do país. A instituição se mobilizou buscando de forma ativa mais pessoas em risco e pensando em intervenções.
Em meio a essa situação, um grupo de estudantes católicos do mesmo quarto ano (que conta com 175 alunos) organizou um evento público, com o professor de psiquiatria, intitulado “O nosso rosto na faculdade”. O evento era um pequeno detalhe no leque de propostas que os fatos estavam gerando. Mesmo assim, não passou despercebido. O movente deles ficou bem claro ainda antes do evento: “O nosso gesto público é para levar a contribuição que a fé pode dar nessa situação de mal-estar do homem atual”. No evento, a plateia era basicamente constituída de alunos e de alguns professores, inclusive alguns dos mais titulados da instituição. A proposta feita foi bem diferente do que se oferecia naqueles dias e falava de um grande recurso de que todos dispomos e nunca utilizamos: a própria experiência. “Que coisa tão simples e banal é essa que chamamos de experiência humana? O que acontece comigo quando me dou conta dela?”. Houve depoimentos, perguntas e respostas. Ao final, a psicóloga responsável pelo acompanhamento dos alunos procurou aquele grupo de estudantes organizadores e lhes propôs: “Venham me ajudar com esse seu método da experiência”. No meio daquele ambiente científico, disputadíssimo, onde não faltam as análises, um pequeno grupo de estudantes colocou uma novidade simplesmente ao falar da necessidade de aprender a fazer experiência: não existe algo bom e algo ruim, mas com tudo se pode aprender e crescer, isto é, aprender a buscar e encontrar o próprio rosto dentro do cotidiano.
Esse fato ocorrido há poucas semanas descreve a situação que estamos vivendo e revela também uma novidade: estamos enfrentando situações difíceis de interpretar, diante das quais muitas vezes não sabemos como nos mover, e isto não tem a ver apenas com os adolescentes ou os jovens. É evidente que existe um mal-estar, uma incapacidade de viver, e consequentemente uma busca de soluções que na maioria das vezes se mostram insuficientes. Daqui nasce um grito surdo, abafado pois não se tem a coragem de manifestá-lo, que facilmente vira desespero. Mas esse grito é sinal de quê? É como se não conseguíssemos mais aguentar a insatisfação, a falta de sentido, o desinteresse. É o grito de quem precisa de um caminho para poder viver. No fundo, é aquele grito de desejo do infinito que todos carregam dentro de si e que precisa de uma resposta. Por isso, a grande palavra que precisa ser redescoberta é a palavra “educação”.
Por que “educação”? Um grande teólogo, Jungmann, citado recentemente pelo Papa Francisco, definia educação como “introdução à realidade total”. Mas entrar na realidade total não significa conhecer todos os detalhes infinitos do mundo, não é essa a ideia de totalidade. Eu preciso de alguém que me ajude a perceber o significado daquele pedaço de realidade que eu tenho de viver: o estudo, o trabalho, a angústia, o amor, o futuro… Eu sou exigência de uma resposta total, isto é, de uma resposta que chegue até o profundo, até encontrar um significado.
Educar não é transferir noções. Se pensarmos concretamente no que foi a educação para nós, cada um verá que foi ser introduzido a algo novo que se tornou seu e isso gerou um crescimento pessoal. Não foi ter encontrado alguém que nos passou definições ou noções, mas alguém que nos abriu uma ferida, porque não nos deixou mais tranquilos. Uma intranquilidade boa, que abriu uma estrada nova, despertou a minha humanidade que estava adormecida. A experiência da educação é isto: encontrar alguém que não me deixa tranquilo porque me abre para uma coisa nova, escancara o tamanho do meu coração e aumenta em mim a capacidade de conter algo, como um copo que aumentasse de tamanho e pudesse conter mais. Por isso é dramático, por isso é uma ferida, porque aumenta a sede: a sede da beleza, da justiça, da verdade.  
A educação pode ser comparada com a experiência que se faz quando se está perdido e alguém ensina o caminho. Quando encontramos alguém assim, nessas circunstâncias, facilmente dizemos: “esse é um anjo”; e você gostaria de beijá-lo e abraçá-lo. Por quê? Porque sem ele você não teria chegado a um outro lugar novo, aonde você precisava ir, e, mais importante, aonde agora, com as suas próprias pernas, pode voltar. Educação, com todas essas nuances, é ser introduzido ao significado de uma realidade, e isso gera a experiência do crescimento, cresce algo em mim, algo de mim se desperta, encontro o meu rosto (para voltar ao episódio dos alunos da USP). É a experiência física de me sentir maior porque me torno mais “eu”.
A educação acontece quando alguém lhe ensina um método, isto é, um caminho. Quando falamos de educação estamos falando de quê? De pessoas que encontramos. Podemos usar aqui a palavra “mestre”. Se pensarmos um pouco, cada um de nós poderá identificar na própria vida um mestre. Quem foi esse mestre? Foi alguém que o fez entrar no significado de alguma realidade, alguém que lhe ensinou um caminho, alguém que lhe ensinou um método para você crescer. O mestre conduz você até uma outra realidade que está “além” dele, algo fascinante que faz você querer ir atrás dele para conhecer de que se trata. E por isso aquela pessoa tem um olhar que brilha, por isso ela fascina. Geralmente, depois de um tempo, a gente não se lembra daquelas pessoas sábias ou inteligentes que vivem de luz própria, os “gurus”, os iluminados por si mesmos. Existem muitas pessoas assim, mas esse fascínio passa logo. Lembramos e ficamos marcados por pessoas que têm nos olhos um horizonte, uma outra realidade que vai além, um “outro” a quem elas também seguem, e isso as faz brilhar. Não só os jovens, mas também nós adultos sentimos a falta e precisamos dessas pessoas hoje.
No livro A beleza desarmada, de Julián Carrón, ele cita este poema de Tagore, que expressa todo o desafio dos tempos de hoje que é amar a liberdade: “Neste mundo aqueles que me amam procuram por todos os meios manter-me preso a eles. O teu amor é maior que o deles, e ainda assim me deixas livre”. Quando há esse amor, o jovem o reconhece, porque reconhece alguém que lhe dá o espaço para crescer.
Este é o desafio que os jovens nos lançam e que nós, adultos, temos o dever de aceitar: “apostar na capacidade do jovem de saber julgar”, afirma Carrón em seu livro. Esta é a coisa mais fascinante, e que muitas vezes nos falta. Falta em nós a confiança na capacidade que os jovens têm de saber julgar, a confiança de que eles têm em si algo que podem começar a utilizar. Quando alguém os olha assim, quando um jovem é olhado assim se desperta algo dentro dele, ele se torna mais livre. Quando eu sou livre para apostar tudo numa pessoa – porque sei que ela tem um coração (aquela sede de beleza, de justiça e de verdade) com o qual pode comparar tudo aquilo que acontece, e julgar -, eu sou livre e ela também se torna mais livre. Mas isso comporta um risco.
O que pode gerar essa confiança que sabe arriscar? O que gera essa visão do futuro a ponto de saber educar com paciência e liberdade, e assim apostar nessa capacidade que o jovem tem, mesmo errando, de poder encontrar algo verdadeiro, e não desistir, e voltar no dia seguinte, e não desanimar? É a experiência no presente de algo que é certo, vivo e verdadeiro, algo que em primeiro lugar gera em nós uma superabundância e uma esperança. Só com uma certeza assim, que sustenta todo o futuro, sem ficarmos dominados pelo medo e pela incerteza, podemos ter essa paciência incansável. Isto se chama esperança.
E só com esperança é possível construir e dar o tempo para que o outro possa entender. Temos um exemplo claro disso hoje: o Papa Francisco. Ou ele é um visionário, ou vive apoiado numa Presença que lhe dá a certeza sobre todo o futuro, mesmo com todas as incertezas que a história apresenta. Só com a certeza de Alguém que me espera é que eu consigo não desanimar quando caio, e posso voltar a caminhar e retomar o caminho. Essa experiência no presente gera energia criativa em quem educa.
Toda essa energia criativa vem de algo que acontece no presente, que nós adultos podemos descobrir. Aqueles alunos de medicina chamaram de “a contribuição da fé”. Eles fizeram uma proposta. É um momento de emergência porque é necessária uma lealdade, a lealdade de uma procura. Tenho de procurar se existe alguém que vive com essa esperança e com essa certeza. E se isso me interessa, ir até o fundo até querer descobrir o que é que possibilita viver assim, como quem descobriu um método que o torna capaz de viver.
“É suficiente uma vela acesa para iluminar a noite mais escura”, dizia o Papa Francisco. Isso é o que foram aqueles alunos da medicina da USP que, diante da noite escura do drama de tantos colegas, foram protagonistas de uma novidade indo atrás de quem não ficou dominado pelo medo mas propôs um caminho por causa de uma certeza e por causa de uma esperança.
Diante dos problemas desse “eu” que não consegue encontrar paz, precisamos seguir essas “velas” com simplicidade e decisão sem ficarmos presos naquilo que já sabemos.
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Texto de referência: A beleza desarmada, de J. Carrón, Terceira Parte. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016, pp. 193-238
Marco Montrasi é economista e responsável no Brasil pelo Movimento Comunhão e Libertação
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