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Em novo livro da série "Compêndio mítico do Rio de Janeiro", Alberto Mussa aborda relações de senhores e escravos

O autor Alberto Mussa: ele já trabalha em "A biblioteca elementar", volume que fecha a série
A morte da filha de um coronel e senhor de escravos, figura proeminente da sociedade carioca no século XIX, revela segredos familiares e os diferentes níveis de poder que existiam entre a casa grande e a senzala.
Este é o ponto de partida de "A hipótese humana", quarto de cinco romances policiais ambientados em diferentes séculos da história da cidade, dentro da série batizada de "Compêndio mítico do Rio de Janeiro", que Alberto Mussa lança na próxima quarta (7), na Travessa do Leblon.
Inspirada em um caso real, a trama é investigada pelo agente secreto da polícia carioca Tito Gualberto, que possui parentesco com a família da vítima e mantém relações obscuras com a mulher assassinada.
Para descobrir o assassino, Tito Gualberto conta com seu senso de investigação e um olhar clínico apurado, mas, diferentemente de outros detetives celebrados pela literatura, como Sherlock Holmes e Hercule Poirot, ele também se deixa levar pela intuição e por caminhos da cidade que divisam o sobrenatural. Tito foi criado em meio à nobreza, mas desde jovem se dedicou à capoeira e a circular pelas áreas boêmias, onde maltas de capoeiristas dividiam seus territórios.
"Ele é um exemplo desse cruzamento de referências brasileiras, é algo que sempre busco na série. Vivemos em um mundo ocidental, mas não somos exatamente ocidentais. Seguimos outros códigos além dos que chegaram pela herança europeia, temos muitas marcas da cultura africana e indígena", analisa Alberto Mussa, um dos autores brasileiros convidados para a 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece entre 26 e 30 de julho.
"O Tito é racionalista até certo ponto, depois segue sua intuição e os caminhos pelos quais a cidade o leva. O Rio é o símbolo dessa nossa 'não-ocidentalidade'", justifica.
Pesquisa
Como nos romances anteriores, a cidade é detalhadamente descrita, e sua geografia é determinante para a compreensão dos personagens. A trama se passa nos arredores da Zona Norte e do Centro, numa capital que ainda mantinha traços rurais - o crime se dá numa chácara onde hoje é o bairro do Catumbi - mas já passava pelas as intervenções urbanas da metrópole atual.
A investigação segue por ruas do Rio Comprido, pelo Campo da Aclamação (hoje conhecido pelo nome mais antigo, Campo de Santana) e pelo Largo da Segunda-Feira, no bairro Tijuca.
Para a pesquisa histórica do livro, Mussa se valeu de jornais da época e documentos cartoriais, além de vasta bibliografia sobre o período, que inclui um atlas das ruas cariocas do século XVI ao XX.
"A referência geográfica é importante, até para estabelecer os territórios disputados pelas maltas de capoeiristas. É curioso que não existam tantos registros sobre este assunto na proporção de como a capoeira era algo cotidiano no período", observa o escritor.
"As lutas entre os grupos eram constantemente relatadas nos arquivos policiais, sendo violentamente reprimidas pelas autoridades".
Além da capoeira, o autor destaca a hierarquia da senzala, determinada pelas diferentes nações dos quais os escravos eram oriundos e os vários níveis de relações estabelecidas com a casa grande.
Um dos personagens, o bocono Catarino (título equivalente ao de babalaô entre os iorubás) comanda os demais escravos como se fosse o próprio senhor, e exerce inegável influência sobre os donos da chácara.
"Os escravos são quase sempre retratados de forma estereotipada, dentro de uma visão ligada à marginalidade ou como o negro afável, leal. É como se não tivessem caráter, não fossem seres humanos diversos, com contornos psicológicos distintos", comenta Mussa, destacando a complexidade das relações entre a senzala e os senhores.
"Geralmente olhamos esta convivência apenas pelo lado do opressor, mas existiam intrincadas disputas de poder e uma hierarquia informal. Os chamados escravos domésticos partilhavam da intimidade dos senhores e isso dava a eles outro status".
Religião
Outro aspecto histórico presente em "A hipótese humana" e pouco explorado na literatura nacional é a chegada do espiritismo ao Brasil.
Em sua investigação, Tito Gualberto chega até uma casa no Largo do Capim (logradouro do Centro que desapareceu para dar passagem à Avenida Presidente Vargas) onde um dos suspeitos assiste a sessões de incorporação mediúnica.
"No Brasil já era conhecida a incorporação nas religiões de matriz africana, mas no século XIX as sessões de mesa ficaram muito populares no Rio, inicialmente como curiosidade e depois como religião", explica Mussa.
"Aqui, o espiritismo virou algo diferente do que era na Europa, com relatos de manifestações de escravos e indígenas, o que acabou levando à criação da umbanda no início do século XX, pelo médium Zélio de Moraes", detalha o autor, que consultou a historiadora Mary del Priore para confirmar se seria verossímil incluir o tema em história ambientada no Rio de 1854.
Para fechar seu compêndio de tramas policiais passadas diferentes séculos do Rio, que inclui também "O trono da rainha Jinga" (século XVII), "A primeira história do mundo" (século XVI) e "O senhor do lado esquerdo" (século XX), Alberto Mussa já trabalha em "A biblioteca elementar", sobre a inquisição carioca no século XVIII.
"Tenho o tema do romance, ainda estou desenvolvendo a história. Antes, devo lançar outro que já estou escrevendo, fora da série, sobre o último desfile da escola de samba Floresta do Andaraí, que ocorreu em 1955, mas no livro vou trazer para 1961, o ano em que nasci", adianta Mussa.
"Quero abordar esse universo das disputas de sambas na quadra, que envolvem comunidades inteiras", completa o escritor sobre o próximo projeto, antes de retornar à série.
Diário do Nordeste

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