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Coletânea de contos de Virginia Woolf é publicada em versão de luxo, destacando outra faceta da escritora

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O ano de 2017 mal entrou na segunda metade e já se pode concluir que o mesmo tem sido bastante favorável aos admiradores da obra de Virginia Woolf (1882-1941). Só no primeiro semestre, dois livros puderam apresentar outra faceta da escritora britânica, além da de romancista, pelo qual ficou conhecida: "Cenas londrinas" (publicado pela editora carioca José Olympio) e "A arte da brevidade" (pela mineira Autêntica).
Enquanto, no primeiro, tivemos acesso à prosa ligeira de Woolf destacando a rotina urbana de Londres no início do século XX, no segundo - lançado no último mês de junho - somos convidados a imergir nas fugazes divagações da autora sobre elementos ordinários do cotidiano. Tudo, desta vez, costurado sob a égide do gênero literário conto, o qual margeou, discretamente, sua produção geral.
Para ser mais específico, apenas 46 escritos contemplaram essa verve contista de Woolf (conforme a conta da segunda edição da coletânea organizada pela inglesa Susan Dick, "The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf", 1988). Uma quantidade bem pequena, justificada, na obra, pelo tradutor e selecionador dos cinco contos que integram a compilação, Tomaz Tadeu.
Segundo ele, foram dois os motivos que a fizeram investir menos no segmento em questão: a pouca energia que depositou no estilo de escrita breve; e a falta de uma unidade temática concebida pela própria escritora - o que desenvolveu nesta seara foi irregular, sem formar propriamente uma antologia.
O trabalho maior ficou, então, nas mãos de estudiosos e tradutores, que, além de resgatar suas criações menos conhecidas - envolvendo crônicas, contos, ensaios e peças curtas de ficção -, puderam organizar alguns desses textos, levando em conta, quando não similaridades narrativas, angulações particulares, usuais da expertise máxima virginiana.
Sofisticação
Primando pela sofisticação, "A arte da brevidade" chega ao mercado editorial nacional em versão de luxo - com capa dura e marcador de página com fita - e em edição bilíngue, proporcionando uma experiência de leitura completa.
Porventura, tal cuidado na concepção do acabamento da obra justifica-se pelo mesmo meticuloso tratamento que Virginia Woolf deposita em cada um dos contos.
Sem deixar de lado a técnica narrativa do fluxo de consciência - ela foi uma das pioneiras a investir, de maneira proeminente, nesse tipo de foco literário - a inglesa caminha pelos meandros do comportamento humano como forma não de compreendê-los, mas somente apresentá-los. Talvez para que nós mesmos, a partir do que está sendo contado, façamos nossas próprias análises sobre aquilo posto e descrito.
Detalhes que se materializam já em "A marca na parede", conto que abre a coletânea. Nele, em um relato honesto, em primeiro pessoa, a prosa virginiana parte do fugaz para o profundo de maneira fluida, especialmente pela forma como elenca as prioridades de seu pensamento.
Inicialmente concentrada na inscrição redonda mencionada no título, "negra contra a parede branca, dois palmos acima do console da lareira", ela parte para detalhes que versam desde aspectos habituais de sua vivência interpessoal até reflexões sobre o conhecimento, de onde provém essa nossa capacidade de pensar sobre as coisas.
"Objetos sólidos", na sequência, traz semelhante configuração, desta vez pondo em uma interessante redoma de mistério acontecimentos que beiram o fantástico. Para isso, os mesmos vêm à tona aos poucos, sem alarde, num crescendo de atenção e envolvimento, qualidade fascinante nas obras de Virginia.
Interlocuções
O conto que mais se aproxima do teor narrativo dos romances da autora é "O legado". Formatado com vistas a valorizar os diálogos - na contramão de como se apresentam os restantes, que se debruçam em divagações -, adequa-se à seção "Entreato: fuga", articulada por Tomaz Tadeu (as outras são "Ato I: Fissão", com os dois primeiros contos já mencionados, e "Ato II: Fusão", com os que devem ser ainda referenciados).
Cheio de culpas, dúvidas e informalidades, um casal é o protagonista da história, dividindo espaço com uma enigmática terceira presença. Já em "A dama no espelho", essa condição tripartida de personagens dá vazão a apenas uma e é nela que Virginia Woolf se concentra para tecer comentários ardilosos sobre nossa identidade e existência. Impressões oportunas para se pensar o "eu" da contemporaneidade.
Ponto certo
"Kew Gardens" fecha a antologia de maneira poética, embora não menos crítica. Com interlocuções inspiradas, a escritora britânica entremeia perspectivas íntimas de seus personagens com a delicadeza das flores, da botânica em seu escopo geral. Um recurso eficaz, que reforça o sutil deslocar-se temático presente no texto.
Na orelha da capa alternativa de papel, vale destacar o que escreve Tomaz Tadeu, num momento de grande reverência ao trabalho da literata, cujas criações lhe atravessaram: "O melhor jeito de contar um conto é pela brevidade. Jogo rápido. Jogo de mão. Nada de mais. Nada de menos. Tudo no ponto certo. Na mosca. Tudo, mas tudo mesmo, como nestes contos de Virginia", escreve ele.
Bonita perspectiva do exercício criativo de uma grande escritora, capaz de evocar simplicidade e riqueza conceitual naquilo que deixa à superfície. Posto que aquilo que elenca para sedimentar no translúcido recipiente da alma, apenas aqueles capazes de penetrar, feito ela, nas incompreensíveis manifestações do inconsciente humano, poderão acessar plenamente.
Livro
A arte da brevidade
Organização e tradução de Tomaz Tadeu

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Editora Autêntica 
2017, 129 páginas 
R$ 40,41 / R$ 19,90 (e-book)

Diário do Nordeste

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