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Coletânea reúne crônicas de Rubem Braga nunca publicadas em livro, sobre a cidade, amizades e a vida

por Leonardo Cazes - Agência O Globo
Rubem Braga: retratos intimistas de colegas e da vivência no Rio de Janeiro ( Foto: Sérgio Tomisaki/Folha )
Rubem Braga (1913- 1990) sempre relutou em ser considerado um literato. O capixaba de Cachoeiro de Itapemirim se via mais como um homem de imprensa. Os jornais foram seu ganha-pão ao longo de toda vida de repórter, redator, correspondente de guerra e, principalmente, cronista. Na busca de assunto para o texto diário, não foram poucas as vezes em que Braga transformou amigos escritores em personagens.
Em dezembro de 1954, por exemplo, uma visita à casa em Copacabana do poeta Carlos Drummond de Andrade, que estava de férias do Correio da Manhã, tornou-se mote para um relato pessoal sobre o amigo, o verão inclemente daquele ano e a falta d'água que assolava o Rio. Na crônica, o poeta taciturno cedeu lugar a um homem comum que, sem camisa, tentava sobreviver ao calor e ao barulho dos caminhões que, às terças-feiras, o acordavam às 3h da manhã ao descarregar frutas, verduras, peixes e carnes para a feira livre.
O retrato intimista de Drummond, intitulado "O poeta", é um dos 25 textos da seleta "O poeta e outras crônicas de literatura e vida" (Global Editora), organizada pelo editor Gustavo Henrique Tuna. A obra reúne crônicas publicadas em diferentes jornais, mas que permaneciam inéditas em livro. Além de Drummond, outros escritores brasileiros aparecem nas páginas, como Graciliano Ramos e Manuel Bandeira. Para Tuna, os textos de Braga misturam o cotidiano da cidade e suas memórias com a obra e a vida dos autores.
"É comum falar na falta de assunto do cronista. Em geral, as crônicas de Braga eram motivadas por acontecimentos, quando uma pessoa morria ou fazia aniversário, por exemplo. Em alguns casos, o tema surge das próprias lembranças dele. O fio que acaba unindo todos os textos é a amizade. Por isso falar de literatura e vida, as duas coisas estão juntas nas crônicas", afirma o organizador.
Detalhes
A crônica "O velho", dedicada a Graciliano Ramos, é emblemática desse cruzamento de vida e literatura. Braga e o "velho Graça" dividiram a mesma pensão na Rua Corrêa Dutra, no Catete. O cronista definia o amigo, que então completava 60 anos, como "esse grande pessimista de coração de menino".
Pela sua memória, foi Lúcio Rangel quem levou os dois para aqueles apartamentos, administrados por uma "velhinha meio pancada" que só chamava Graciliano de "Braziliano" e apostava, religiosamente, quase tudo o que ganhava na roleta, "sempre no número da catacumba do Flori, seu marido". O defunto não costumava trazer muita sorte, e os dois escritores sofriam com as pobres refeições.
"Foi nesse período em que os dois viveram na mesma pensão no Catete que Graciliano escreveu o romance 'Vidas secas'. Ele não conta isso nessa crônica, conta em outra. Mas foi nessa mesma época", explica Tuna. Segundo o editor, há material inédito suficiente para publicar ao menos mais duas obras apenas com crônicas sobre escritores. Tuna explica que a editora contratou dois pesquisadores para levantar todos os textos com esse perfil do acervo do escritor, guardado no Arquivo-Museu da Literatura Brasileira na Fundação Casa de Rui Barbosa e que se encontra digitalizado e disponível na internet.
Após a identificação das crônicas, Tuna debruçou-se sobre o material para eleger as 25 que compõem o livro. O principal critério foi não repetir autores, já que ele, em vários casos, dedicou mais de um texto a um amigo.
Nem instituições como a Academia Brasileira de Letras (ABL) são poupadas por Braga. Em agosto de 1959, época da posse de seu amigo Álvaro Moreyra na casa de Machado de Assis, o cronista confessa: "não entendo por que as pessoas querem entrar para a Academia. É verdade que sua composição melhorou muito, mas assim mesmo que coisa mais sem graça esse clube sem senhoras, com um chá por semana e a presença sempre constrangedora de alguns velhos chicharros sobreviventes".
A crítica à ABL, entretanto, é só o pretexto para falar de "Alvinho", como chamava Moreyra, e de sua casa na Rua Xavier da Silveira, em Copacabana, para onde jovens jornalistas e escritores, muitos recém-chegados na então capital federal, afluíam ainda nos anos 1930.
Para Tuna, ao falar dos amigos, Braga revela também muito sobre si mesmo. O cronista narra sua chegada a São Paulo, em 1933, quando ainda era um jovem repórter com uma passagem pela cadeia, por conta de suas reportagens na Revolução Constitucionalista de 1932, e não conhecia ninguém na cidade.
Aos poucos, alcançou fama com seus textos no Diário de S. Paulo até despertar a fúria dos paulistas com uma crônica sobre um antepassado seu, "um Braga bandeirante, caçador de índios e esmeraldas, paulista de 400 anos...". A história lhe rendeu a amizade de Oswald de Andrade e a reprimenda de Mário de Andrade.
Memórias
Já no texto sobre Manuel Bandeira, Braga lembra os anos de adolescência que passou em Niterói e o deslumbramento que lhe causou a obra do poeta pernambucano. O cronista diz, inclusive, que os versos de Bandeira são a principal influência no seu estilo. "Acho que nenhum prosador teve influência maior em minha escrita do que o poeta Manuel", escreveu, em "Meu professor Bandeira".
"Essas crônicas abrangem um grupo largo de escritores, jornalistas. De Alcântara Machado até a Clarice Lispector. Tem um pouco de autobiografia aí também. Braga teve uma vida muito intensa. Trabalhou em Minas, Recife, Rio, São Paulo, foi adido comercial no Chile e embaixador no Marrocos. Isso revela muito sua inquietude", afirma o editor.

Diário do Nordeste

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