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Escritor e pesquisador, Gilmar de Carvalho escreve sobre a peleja de Cego Aderaldo com a vida, a arte e a tradição

por Gilmar de Carvalho* - Especial para o Caderno 3
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Mote para outros artistas, a figura de Cego Aderaldo conquistou popularidade digna de mito ( Foto: Elizangela Santos )
Aderaldo Ferreira de Araújo tinha visto o mundo e ele começava na Rua da Vala, no Crato. Cegou aos 18 anos, em 1896, depois de beber um copo d'água. Dizia que os olhos sangravam, como uma personagem de tragédia grega.
Conheceu cores, formas, texturas e também as agruras da vida, que ele não poderia esquecer, sob pena de falsear o real, cujas imagens se diluiriam aos poucos.
Estaria fadado a ser um trabalhador da Rede Viação Cearense (RVC). Casaria, teria filhos, faria carreira. A vida traiu o roteiro que parecia ter sido esboçado para ele.
Devia ser um sonho trabalhar na ferrovia e um espetáculo ver as pessoas que chegavam e/ou partiam, acompanhar os pregões dos vendedores, e ouvir apitos ou o barulho onomatopaico dos trens.
Aderaldo pediu a Deus um meio de sobreviver diante de tantas dificuldades. Não queria pedir esmolas. Mal sabia que Portugal tinha reservado aos cegos a venda de poesia nas feiras, prática, informalmente, trazida para o Brasil.
Ele foi muito além da banca dos folhetos e da estratégia de cantar um trecho da história, levando os curiosos à compra do cordel para terem acesso ao enredo completo.
Começou a improvisar. Tinha este dom e tiraria partido dele. Ninguém profetizou que ele seria um dos maiores cantadores brasileiros de todos os tempos. As palavras ajudaram a salvar Aderaldo.
Deve ter cantado até ter a coragem de "vender" sua performance, sertão a dentro. Todo começo tem seus entraves, como um rito de iniciação, que só os bons, os corajosos e os determinados conseguem transpor. Aderaldo foi um deles.
O Crato era muito longe, onde acabavam os trilhos que partiam da Capital. Quixadá foi o lugar escolhido por ele para se fixar. No sertão central, teria como balizas as pedras que emergiram em épocas imemoriais e formavam um cenário de planeta inexplorado. O Império construiu o açude do Cedro. Era o início de uma ofensiva para represar a água, depois de secas devastadoras, que mataram tanta gente.
Ele conseguiu afinar sua voz, dar agilidade ao repente, e improvisar como poucos. No começo usava uma rabequinha, substituída pela viola. A capacidade de aceitar desafios era grande.
Outros cantadores leram dicionários, para destrinchar as palavras cujo sentido não sabiam. Folhearam livros de história sagrada, com episódios espetaculares e perfis de reis, juízes e profetas. Buscaram decifrar os sinais do Lunário Perpétuo. Fixaram-se nos livros de geografia, para saber qual a capital da Birmânia. Aderaldo não podia ler. Outros o fariam para ele, para ativar a memória, que cavalgaria na hora da peleja.
Não era só uma questão de alinhar palavras ou de construir castelos com elas. Aderaldo precisava da argumentação. Isso faria dele um cantador de respeito. Chegou lá, graças à retórica, aprendida com a vida, no burburinho dos mercados, na aventura das viagens, onde tivesse gente reunida, ele estaria atento e tiraria lições do que seria dito, silenciado ou insinuado.
Ele movimentava a "roda da fortuna", para formar seu repertório, e rejeitava o "balaio", o verso pronto, o argumento previsível, que muitos cantadores esgrimem na luta.
Com muito esforço, começou a se construir como mito. Precisava ser elogiado, para ser chamado e se confrontar com os rivais. A fama do bom cantador correu léguas e as pessoas não mediam esforços para participar de suas apresentações.
No começo, prevalecia o "pé de parede", com a bacia no meio da sala. O dono da casa contratava os cantadores e pedia a colaboração dos convidados. A doação, de um tostão que fosse, mostrava a gratidão pela acolhida, era uma forma de ser convidado para outras apresentações.
O anfitrião podia servir um café e até alguma comida, se o ano tivesse sido de bom inverno ou se os cantadores fizessem jus a este mimo.
A cantoria não podia prescindir da plateia, da torcida que vibra, xinga, aplaude, deprecia, tampouco do mote que alguém leva para surpreender, subverter o enredo e provocar reviravoltas. A cantoria tem sempre um vencedor.
Aderaldo foi construindo sua imagem, à margem das estratégias às quais a Indústria Cultural recorre, cada vez mais, para "construir" os ídolos com os quais trabalha. Ser "celebridade" não quer dizer muita coisa, em um contexto de indigência criativa, de diluição dos argumentos, e de insegurança na hora de saltar no escuro e transpor o abismo das palavras. É aí que deve cintilar a argumentação mais vigorosa, como uma epifania, em meio ao escuro que nos cerca.
A consagração veio com o Festival dos Cantadores, no Theatro José de Alencar, em 1947. Ele fez bonito e foi vencedor, de acordo com a mídia.
Iniciou vários meninos na arte de guiar um cego. Eles não desempenhavam este papel por muito tempo. Quando cresciam, e chegava a hora de constituir família, eram trocados por outros, sempre com a autorização dos pais. Mário Aderaldo ficou, ganhou "status" de filho e cuidou da memória do cego até morrer.
Aderaldo foi se consolidando aos poucos. Viajava muito. Espalhou seu nome pelo nordeste, Virou lenda. Todo menino que usasse óculos ganhava o apelido de Aderaldo, por aproximação com a cegueira do mestre.
Em Belém do Pará, inspirou o famoso folheto "Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum", e disputou com cantadores afamados.
Viajou para o sudeste, se apresentou nos programas de rádio e chegou à TV Tupi. Ganhou um projetor de filmes do governador paulista Adhemar de Barros.
Ditou suas memórias ao escritor Eduardo Campos e ganhou as páginas do livro "Eu sou o Cego Aderaldo", publicado pela Imprensa Universitária do Ceará, nos anos 1960. O escrito (impresso, neste caso) veio reforçar a voz.
Os registros que temos nos mostram a força de seu canto, a urdidura das palavras, e a competência dos seus argumentos. A performance, no entanto, será sempre intraduzível. Perdemos esta parte para sempre. Esta habilidade artesanal evidencia uma herança milenar e engrandece este homem que virou estátua, a nos saudar da Estação Rodoviária de Quixadá, onde foi colocada depois de sua morte, há cinquenta anos.
Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), professor da UFC e autor de livros como "Artes da Tradição", "Madeira Matriz" e "Patativa do Assaré - Uma biografia" (que ganhará reedição em julho)
 
Diário do Nordeste

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