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Rio de Janeiro: Cais do Valongo ganha título de Patrimônio Mundial

Principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Cais do Valongo é um símbolo desse infeliz passado.
Dos quatro milhões de escravos que o Brasil recebeu, cerca de um quarto desembarcou no Cais de Valongo.
Dos quatro milhões de escravos que o Brasil recebeu, cerca de um quarto desembarcou no Cais de Valongo. (Tomaz Silva/ Agência Brasil)

O sofrimento daqueles que foram tirados à força de suas terras de origem para uma vida de trabalhos forçados e degradação é algo que não pode ser esquecido. Foram mais de quatro milhões de africanos escravizados no Brasil e que agora terão sua dor representada e relembrada na decisão da UNESCO, que acaba de reconhecer o Sítio Arqueológico Cais do Valongo (RJ) como Patrimônio Mundial.

A decisão partiu de 22 nações que compõem o Comitê do Patrimônio Mundial, que reuniu-se esta semana na cidade de Cracóvia, na Polônia.

Representando o Brasil, a presidente do Iphan, Kátia Bogéa, acompanhou as discussões promovidas pelo Comitê e ressaltou a importância do título. “Em momentos de elevada intolerância que ronda o mundo atual, o reconhecimento de sítios sensíveis coloca em evidência a necessidade de compartilharmos nossa experiência em prol de uma visão mais humanista da sociedade global, a partir da observação do quê o Cais do Valongo significou e da sua reapropriação social nos dias atuais, em especial, pelos descendentes afro-brasileiros, que numa atitude de superação reafirmam sua negritude e sua história para o Brasil, as Américas e todo o Mundo”, disse, em seu discurso.

Principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Cais do Valongo, localizado na região portuária do Rio de Janeiro (RJ), é um símbolo desse infeliz episódio que representa uma das maiores injustiças da história mundial. Muito importante para a comunidade afro-brasileira e para a comunidade afro-americana em geral, o Cais do Valongo agora encontra-se no mesmo patamar da cidade de Hiroshima, no Japão, e do Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia, classificados como locais de memória e sofrimento.

O Cais do Valongo foi o principal cais de desembarque de africanos escravizados em todas as Américas e também o único preservado materialmente. Pela magnitude do que representa, coloca-se como o mais destacado vestígio do tráfico negreiro no continente americano.
 
O título de Patrimônio Mundial representa o reconhecimento de um exemplo único da história da humanidade que, apesar do processo escravagista produzido, propiciou uma inestimável contribuição dos africanos e seus descendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômico e social do Brasil, de modo direto, e da região, de modo indireto. O título também reconhece o valor universal excepcional do local, como memória da violência contra a humanidade representada pela escravidão, e de resistência, liberdade e afirmação, fortalecendo as responsabilidades históricas, não só do Estado brasileiro, como de todos os países membros da UNESCO.

O processo da candidatura 

Apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, a candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo foi aceita no fim de 2015 pelo Centro do Patrimônio Mundial.

A candidatura teve como base um dossiê que resgata a história do tráfico de escravos na cidade em suas várias fases e analisa, detalhadamente, a importância histórica e social desse processo, além do significado do sítio arqueológico não só para os afrodescendentes, mas para todos os brasileiros. Coordenado pelo antropólogo Milton Guran e elaborado pelo Iphan, em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, o documento foi finalizado após um ano de trabalho, onde são apresentados para avaliação o valor universal excepcional do bem, além dos parâmetros relacionados à sua proteção, conservação e gestão, conforme estabelecem as diretrizes operacionais da Convenção do Patrimônio Mundial, Natural e Cultural, de 1972.

Grande porta de entrada de africanos escravizados no Brasil

O Brasil recebeu cerca de quatro milhões de escravos nos mais de três séculos de duração do regime escravagista, o que equivale a 40% de todos os africanos que chegaram vivos nas Américas, entre os séculos XVI e XIX. Destes, aproximadamente 60% entraram pelo Rio de Janeiro, sendo que cerca de um milhão deles pelo Cais do Valongo. A partir de 1774, por determinação do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil, o desembarque de escravos no Rio foi integralmente concentrado na região da Praia do Valongo, onde se instalou o mercado de escravos que, além das casas de comércio, incluía um cemitério e um lazareto.

O objetivo era retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados. Após a chegada, eles eram destinados às plantações de café, fumo e açúcar do interior e de outras regiões do Brasil. Os que ficavam no Rio de Janeiro, geralmente eram forçados aos trabalhos domésticos ou em obras públicas.
A vinda da família real portuguesa para o Brasil e a intensificação da cafeicultura ampliaram consideravelmente o tráfico escravagista. Em 1811, com o incremento do tráfico e o fluxo de outras mercadorias, foram feitas obras de infraestrutura, incluindo o calçamento de pedra de um trecho da Praia do Valongo, que constitui atualmente o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo.

O local foi desativado como porto de desembarque de escravos em 1831, quando o tráfico transatlântico foi proibido por pressão da Inglaterra – norma solenemente ignorada, que recebeu a denominação irônica de lei para inglês ver. Doze anos depois, em 1843, o Cais do Valongo foi aterrado para receber a Princesa das Duas Sicílias e Princesa de Bourbon-Anjou, Teresa Cristina, esposa do Imperador Dom Pedro II, recebendo o nome de Cais da Imperatriz. Com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o Brasil, embora a última remessa conhecida date de 1872 e a escravidão tenha persistido até a Abolição, em 1888.

Em 1911, com as reformas urbanísticas da cidade, o Cais da Imperatriz foi aterrado. No entanto, durante as obras do Porto Maravilha, com as escavações realizadas no local em 2011, foram encontrados milhares de objetos, como parte de calçados, botões feitos com ossos, colares, amuletos, anéis e pulseiras em piaçava de extrema delicadeza, jogos de búzios e outras peças usadas em rituais religiosos. Entre os achados raros, há uma caixinha de joias, esculpida em antimônio, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa.

Em 2012, a prefeitura do Rio de janeiro acatou a sugestão das Organizações dos Movimentos Negros e transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública. O Cais do Valongo passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que estabelece marcos da cultura afro-brasileira na Região Portuária, ao lado do Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, Centro Cultural José Bonifácio e Cemitério dos Pretos Novos.

Em 20 de novembro de 2013, Dia da Consciência Negra, o Cais do Valongo foi alçado a Patrimônio Cultural da cidade do Rio de Janeiro, por meio do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). A intenção da cidade do Rio de Janeiro em lançar a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade foi reforçada também pelo fato de representantes da UNESCO também considerarem o sítio arqueológico como parte da Rota dos Escravos. Um passo a mais para o reconhecimento do bem.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

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