Pular para o conteúdo principal

"Abecedário de personagens do folclore brasileiro" reúne o panteão mestiço de seres fantásticos

por Dellano Rios - Editor de Área
Image-0-Artigo-2290040-1
Saci, Curupira e Canhambora (em sentido horário): seres ganham “corpo” pela arte de Cezar Berje
Em "Deuses Americanos" (e na série de TV/web derivada do romance), Neil Gaiman apresenta um panteão de divindades estrangeiras vivendo entre os mortais nos EUA. São deuses nórdicos, africanos, anglo-saxões que atravessaram oceanos para chegar ao "novo mundo", ao lado de invasores e escravos, e hoje subsistem tais quais suas concepções mais conhecidas.
Em sua ficção, o inglês Neil Gaiman segura um espelho capaz de desnudar a imagem que reflete. Por um lado, mostra algo que ainda é difícil para muitos norte-americanos reconhecerem - que seu país foi e é formado por imigrantes, refugiados e por gente que foi traficada para lá. Na identificação de seus deuses com suas fontes originais, sem grandes transformações causadas pelos tempos que passaram deste lado do Atlântico, ele termina por mostrar o quanto essas culturas ainda têm dificuldade em se aproximar uma das outras e se misturar.
"Abecedário de personagens do folclore brasileiro" é um livro que, também evocando seres fantásticos, mostra o quão diferente é a realidade cultural brasileira, se comparada à dos EUA. Jornalista e pesquisadora das tradições populares, Januária Cristina Alves perfilou 141 criaturas de nosso imaginário, enquanto o artista visual Cezar Berje conferiu uma tradução imagética para cada uma delas.
Não há, aqui, deuses e divindades estrangeiras. Parte das figuras do folclore inclui aquelas que se originam do imaginário e das tradições orais dos povos nativos. Outra parte tem raízes em terras distantes, quase sempre nos continentes africano e europeu. Mas a travessia e a permanência no lado de cá do mundo os transformou. Mudam suas feições, seus nomes e até suas histórias. Nossos "deuses" são, sempre, mestiços.
"Lembra do ditado? 'Quem conta um conto aumenta um ponto'. Os personagens foram sendo trazidas por portugueses, índios e negros e as histórias foram e continuam sendo contadas e recontadas. Talvez nossos netos contem essas histórias de outras maneiras", explica Januária Cristina Alves.
Pesquisa
Foi assim, ouvindo enredos fantásticos sendo contados e recontados, pelos pais e avós, de Pernambuco, que a autora se encantou pelos seres de nosso panteão imaginário. O interesse inicial era o de fazer um livro com histórias do folclore. "Mas essa é uma área ampla, muito extensa e complexa. Tivemos que fazer um recorte. E vimos que faltava no mercado uma obra abrangente, que reunisse os personagens do folclore. De alguns, só há a descrição; mas de outros, você tem histórias também", explica ela, que inclui os dois tipos em seu livro.
Januária Cristina Alves levou dois anos pesquisando. A opção foi pelas fontes escritas, para reduzir o número de variações de uma mesma figura. Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), o grande folclorista, serviu de ponto de referência. Sua obra, com fartas informações sobre os personagens do imaginário tradicional popular brasileiro, serviu de ponto de partida. A escritora então buscou fontes mais recentes e outras anteriores a Câmara Cascudo ("livros que ele não leu ou que, se leu, desprezou em sua pesquisa", explica ela).
Assim, fechou uma lista editada de 141 personagens, apesar de ter chegado a um número duas vezes maior. No "Abecedário", cabem tanto figuras famosas, ainda em voga, como o Saci, a Iara e o Bicho-Papão; outras de origem mais recente, como o Chupa-Cabras; e outros de quem quase não se ouve falar. O território que habitam é o mesmo de toda tradição oral - a memória, ainda que alguns estejam às margens do esquecimento.
Livro
Abecedário de personagens do folclore brasileiro
Januária Cristina Alves

Ilustrações: Cezar Berje
Edições Sesc-SP/ FTD
2017, 416 páginas
R$ 55
 
Diário do Nordeste

Comentários