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Coluna Artesã das Palavras: Escritor e crítico da própria obra… é possível?

Por Vanessa Passos*
Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima
escrita, em parte, é um ato solitário. Digo “em parte” porque, se levarmos em consideração os livros já lidos pelos escritores, ou as conversas roubadas dos cafés e das praças, ou, ainda, os lugares que observamos, precisaremos admitir que a escrita não é tão solitária assim. 
Também sei que a solidão a que nos referimos trata da relação do escritor com as palavras, que compreende a eterna busca pela palavra exata, pelo anseio de construir um personagem complexo ou pelo desejo de desenvolver uma trama bem elaborada. Tudo isso nos faz nutrir a ideia de que a solidão é sempre o melhor caminho para a escrita.
No entanto, neste processo laborioso, sabemos que a literatura faz parte de um sistema, segundo Antonio Cândido: autor-obra-leitor. De um lado, está o escritor. Do outro, o(s) possíveis leitor(es). A ponte que os une, portanto, é a obra.
Sem desejar parecer óbvia, vamos pensar que, se cada escritor tem por fim um produto (um livro) cuja finalidade é alcançar outras pessoas (os leitores), não seria estranho imaginar que ele (o autor) tem autoridade absoluta para ser unicamente o crítico de sua obra? Mais ainda, se já temos um conjunto de obras reconhecidas por leitores (comuns ou críticos), por que razão ignorar a importância de um feedback?
feedback, em sua essência, significa dar resposta a um determinado pedido ou acontecimento. No âmbito da literatura, receber feedback  pode trazer à tona um outro conceito, o de leitor beta, ou seja, aquela pessoa que realiza a segunda leitura de um texto depois da primeira versão. Desse modo, qual será a importância desse processo para quem escreve? É realmente necessário?
O processo de criação literária é algo individualizado. Existem escritores (como eu), que são amantes de caderninhos, moleskines e blocos de anotações, nos quais fazem planejamento de escrita, ficha de personagens ou escrevem várias e várias versões. Há outros para quem a ausência de caneta e papel é irrelevante. Eles registram com a alma, com o corpo que captam todos os sentidos e faíscas de ideias que surgem no cotidiano. Não há regras nem fórmulas.
Mas tanto um escritor como o outro, após escrever seu livro, pretende que ele encontre um leitor. É neste ponto que reside a relevância de um feedback. Será possível alguém ser escritor e crítico da própria obra?
Ao escrever, devotamos de forma religiosa todas as nossas energias para a escrita. Criar, recriar, construir imagens a partir de palavras demanda tempo e energia. Estamos envolvidos afetivamente no processo. Tão envolvidos que alguns escritores sentem falta da convivência diária com os personagens que criaram. Em outras ocasiões, alguns personagens têm enorme dificuldade de assimilarem o ponto final de uma história e ficam voltando constantemente para atormentarem seus autores, como é o caso de alguns personagens de Lygia Fagundes Telles e de Lygia Bojunga Nunes.
Por fim, o feedback funciona como um espectro, ele transforma uma ideia unívoca em diversos pontos de luz que podem iluminar os caminhos da escrita. Receber feedback e saber ouvi-lo com atenção é um ato de humildade. Além disso, pode contribuir bastante para melhorar nosso texto. Muitos escritores dão a devida importância ao feedback. Cito ao menos um para ilustrar este argumento. Numa entrevista ao Jornal Rascunho publicada em livro, Milton Hatoum, escritor, tradutor e professor brasileiro, comenta a respeito das versões que escreveu de sua obra-prima Dois irmãos (2000):
 “Entre oito e onze versões. Quando terminei, entreguei o livro para alguns amigos lerem. Alguns críticos leitores, apaixonados por literatura, umas quatro ou cinco pessoas. Raduan Nassar foi um dos que leram e deram boas sugestões. Todos deram boas sugestões. Eu não sabia mais o que tinha que despertar ou não despertar. Eu precisava ter aquelas cinco leituras, ir cruzando aquelas observações para ver o que realmente era comum a todas. Você tem que mudar, reelaborar e escrever. Parece uma besteira, mas, nesse aspecto, gosto de dialogar. Porque a literatura é diálogo.”
Cientes de que “literatura é diálogo”, percebemos que receber feedbacks passa a ser uma prática inevitável. Se não recebermos antes, de amigos e de pessoas de nossa confiança que estão dispostas a fazer sugestões sobre nosso texto, receberemos depois, dos leitores e críticos que lerão a obra.
Quem tiver curiosidade de conhecer a obra organizada por Luís Henrique Pellanda, que mencionei no texto, o livro intitula-se: As melhores entrevistas do Rascunho – Vol. 1.
*Vanessa Passos é escritora, professora de Língua Portuguesa, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras-UFC) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa – Espaços de Leituras: Cânones e Bibliotecas. Gosta de viajar, de ler histórias para a filha, de visitar bibliotecas e de criar coreografias. Ela assina, semanalmente, a coluna Artesã das Palavras no blog Leituras da Bel.
Blog O Povo

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