Pular para o conteúdo principal

Filme de Daniela Thomas levanta discussões sobre a representatividade negra no cinema

por Diego Benevides* - Crítico de cinema
Vazante
A caprichada fotografia em preto e branco não salva o longa-metragem “Vazante”
É recorrente que os ânimos se acentuem no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que chega à 50ª edição se reafirmando como o mais importante encontro cinematográfico que discute e dá espaço para as tendências da produção nacional. Em sua primeira exibição no Brasil, após passagem no Festival de Berlim, “Vazante” reacendeu as questões sensíveis do protagonismo negro no cinema.
O longa de Daniele Thomas foi exibido na mostra competitiva do último sábado (16). Ambientada em Minas Gerais, no século XIX, a trama acompanha Antonio, que se casa com a jovem Beatriz após perder a esposa. As constantes expedições de Antonio exaltam a solidão de Beatriz, que encontra nos escravos uma companhia que se transforma em traição conjugal.
Projeto dos sonhos de Daniela Thomas, “Vazante” é marcado especialmente pelo apuro estético, a partir de uma fotografia em preto e branco impecável e da precisão da reconstituição da época. O incômodo, no entanto, surgiu do substrato da narrativa proposta pela cineasta. A diretora conta que sua obra é um registro do opressor que vive suas relações de poder, sejam econômicas ou afetivas, de forma patriarcal.
O foco nessa hierarquia dos brancos inevitavelmente suscita os questionamentos sobre as feridas vividas pelos negros no Brasil. Tudo bem que a diretora tenha explicado que sua intenção não foi mesmo pensar a representatividade negra na história que conta, mas isso faz com que a obra abdique de uma abordagem política em uma sociedade contemporânea onde as opressões são constantemente questionadas pela arte.
A trama arrastada de “Vazante” em momento algum alcança o tom épico a que se propõe, já que opta por um ritmo mais espaçado, envernizado e burocrático. Enquanto se preocupa com o estilo da imagem, filmada com olhar cirúrgico pela cineasta, o roteiro não parece encontrar seu real conflito, a não ser exaltar os caprichos de um homem que desconhece não apenas a ética, mas a humanidade que existe no outro.
Os escravos do filme estão lá para servir, seja como mão de obra ou desejo sexual. Eles também são incapazes até mesmo de serem entendidos pelo público, já que os diálogos africanos não são legendados. A voz, literalmente, é dos brancos poderosos. No caso da sinhá Beatriz, incomoda o tom tranquilizante de beatificação reforçado até a última cena. Há ainda uma tentativa de mostrar como surgiu a miscigenação no Brasil, mas que acoberta a violência que houve nesse processo.
Arrependimento
“Eu acho que não faria o filme agora. Só quero reforçar que temos que ter cuidado com essas dores que valem mais do que outras dores”, disse a diretora, ao ser questionada no debate se, hoje, ela faria “Vazante” com a mesma abordagem.
Durante toda a sabatina, a cineasta respondeu com segurança os apontamentos negativos sobre o filme, em especial feitos por mulheres negras que estavam na plateia. Sua principal carta na manga foi reconhecer, desde o início, que este não é um filme sobre representatividade negra. Entretanto, depois de horas sendo questionada, de forma até violenta, sobre sua visão histórica, o principal deslize de Daniela foi não pensar direito ao confessar que não faria mais o filme. Sua defesa firme se dissolveu com apenas uma citação.
“Para mim, o fato de ser chamada de conservadora vai me fazer ficar refletindo cinco horas para entender para onde foi a minha militância com a causa”, completou. De uma forma ou de outra, o debate que o filme levantou comprova que existe cada vez mais um compromisso das artes em geral em pensar, criticar e propor sobre temas que ainda são sensíveis. O preconceito racial não acabou com a escravidão e a dívida deixada por esse tempo sombrio não pode passar batido.
Muito se tem cobrado, inclusive em Hollywood, a presença de negros em altos cargos da indústria cinematográfica e na linha de frente do elenco. Ver “Vazante” dá a impressão de uma obra que já nasce ultrapassada, sem preocupação em pensar a representatividade não apenas da cor, mas das minorias que hoje encontram no discurso político uma arma de defesa e, principalmente, de cobrança. É difícil cometer caprichos sem compromisso com o que existe ao redor, com os tempos sombrios que não ficaram apenas no passado, mas estão cada vez mais presentes hoje.
A diretora contou também que, antes de começar a carreira do filme nos festivais, mostrou o resultado para a atriz Camila Pitanga, que já tinha alertado sobre a câmera privilegiar, acima de tudo, os personagens brancos. “Se eu tivesse me colocado no protagonista negro, eu estaria morta aqui. Podia ser pior”, ponderou a cineasta, com uma voz embargada durante o debate.
É importante que “Vazante” traga à tona esse diálogo em um festival como o de Brasília, sempre politizado. Curioso, no entanto, foi observar a ira com que a plateia sabatinava a diretora, que tentou manter o equilíbrio para explicar suas intenções com o filme. O espaço de debate é importante para construir novas memórias, mas a falta de empatia do filme foi respondida pela plateia também com pouca empatia. “Estou apanhando e ainda vou apanhar muito (com o filme)”, finalizou Daniela.
*O crítico viajou a Brasília a convite do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Diário do Nordeste

Comentários