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Símbolo do acidente com o césio-137, Leide das Neves é lembrada com carinho por parentes: 'Era muito alegre'

Símbolo da tragédia com o césio-137, ocorrido há 30 anos, em Goiânia, a menina Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, foi uma das quatro pessoas que morreram por causa da contaminação com o material radioativo. Tia da criança, a dona de casa Luiza Odet dos Santos, 58 anos, morava no mesmo lote que a sobrinha e se recorda com carinho da menina que sonhava em ser modelo e estava sempre com um sorriso no rosto.
“Ela era muito alegre, brincalhona, queria ser modelo e era muito bonita mesmo. A primeira coisa que faziam para descontaminar era tirar o cabelo, e me lembro de que ela perguntou se o cabelo ia crescer de novo. Ela se preocupava muito com o cabelo dela”, contou ao G1.
O G1 Goiás publica nesta semana uma série de reportagens sobre os 30 anos do acidente com o césio-137, em Goiânia.
O acidente começou na manhã de um domingo, dia 13 de setembro de 1987, quando a peça de chumbo e metal, que tinha a cápsula de césio no meio, foi levada do antigo Instituto Goiano de Radiologia, na Avenida Paranaíba, para a casa de um dos catadores, na Rua 57, no Centro de Goiânia. Dias depois, a peça foi revendida para Devair Ferreira e, em 24 de setembro, o irmão dele e pai da Leide, Ivo Alves Ferreira, foi visitá-lo e levou fragmentos de césio para a casa da família.
 
Leide das Neves se tornou símbolo da tragédia com o césio-137 (Foto: Reprodução / TV Anhanguera)
Leide das Neves se tornou símbolo da tragédia com o césio-137 (Foto: Reprodução / TV Anhanguera)
 
No mesmo dia em que Leide foi contaminada, Luiza Odet também teve contato com o césio-137, justamente, por causa de um pedido da sobrinha. A dona de casa se recorda com riqueza de detalhes do dia 24 de setembro.
“A Leide me chamou: ‘Titia, vem ver a pedrinha brilhante que o papai trouxe’. Aí eu entrei no quarto, e ela mesma apagou a luz. Realmente, brilhava muito, parecia até soltar raios”, se recorda.
Luiza Odet conta que o pai de Leide também estava no quarto e passou o papel em que tinha colocado o césio pelo corpo da prima para que ela “ficasse bonita”. Onde houve contato, a dona de casa sofreu lesões.
Em seguida, Luiza Odet pegou uma pedrinha e levou para casa. Foi quando o marido dela, Kardec Sebastião dos Santos, 61 anos, foi contaminado acidentalmente, pois não se interessou pelo material.
Luiza Odet acredita que, por um milagre, os quatro filhos dela não tiveram contato direto com o césio. “Nesse dia, não sei o motivo, meus meninos não brincaram junto com a Leide, se tivessem brincado, teriam se contaminado muito também. Hoje também me marca muito que tive de parar de amamentar minha filha mais nova aos 7 meses, se mamasse, eu tenho certeza que não tinha mais minha filha porque caiu césio no meu seio, tive lesão aberta, e ela ia ingerir”, ressaltou.
 
Luiza Odet  guarda recortes de jornais da época do acidente (Foto: Paula Resende/ G1)Luiza Odet  guarda recortes de jornais da época do acidente (Foto: Paula Resende/ G1)
Luiza Odet guarda recortes de jornais da época do acidente (Foto: Paula Resende/ G1)

Descontaminação

Ao todo, foi constatada a contaminação pelo césio-137 em 249 pessoas. Neste grupo, 129 tinham rastros da substância interna e externa ao organismo. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) calculou ainda que 49 pessoas foram hospitalizadas, sendo que 20 necessitaram de cuidados médicos intensivos.
Luiza Odet, Kardec, Ivo e Leide estão entre as 14 pessoas que foram transferidas de Goiânia para o Hospital Marcilio Dias, no Rio de Janeiro, para a descontaminação. “Eu não tinha noção do que era, não imaginava que a gente ia ficar hospitalizado o tempo que ficamos isolados”, se recorda Luiza.
De acordo com a dona de casa, apesar da gravidade do quadro de saúde, Leide das Neves continuava espalhando alegria na unidade de saúde. “Ela ganhava muitos brinquedinhos, pegava bandejinha e fazia de conta que servia cafezinho nos quartos. Ela ia mancando porque tinha uma lesão na sola do pé”, relata.
 
Leide das Neves não resistiu à contaminação (Foto: Reprodução/ TV Anhanguera)
Leide das Neves não resistiu à contaminação (Foto: Reprodução/ TV Anhanguera)
Tio de Leide e irmão de Ivo, Odesson conta que a preocupação da menina com o pai marcou muito o irmão. “Se ela percebia que ele estava chorando, perguntava o motivo, e ele dizia: ‘Não é nada, é cisco que caiu no olho´. E ela dizia: ‘Fica tranquilo, estou bem’. Mas ela já estava prostrada”, diz.
No mesmo dia da morte de Leide, 23 de outubro de 1987, morreu Maria Gabriela Ferreira, de 37 anos, tia da menina e mulher de Devair. Foi ela quem decidiu levar o aparelho de radioterapia à Vigilância Sanitária, quando se descobriu o tragédia.
Naquela mesma semana, faleceram também dois jovens, Israel Batista dos Santo, de 22 anos, e Admilson Alves de Souza, de 18, que eram funcionários do ferro-velho de Devair. Estes quatro mortos são os únicos contabilizados pelos dados oficiais, que reconhecem ainda que outros quatro tiveram danos na medula óssea e oito tiveram síndrome de radiação aguda.
 
Pai de Leide das Neves, Ivo resistiu à contaminação, mas não se conformava com a morte da filha e morreu anos depois (Foto: Carlos Costa/ O Popular)
Pai de Leide das Neves, Ivo resistiu à contaminação, mas não se conformava com a morte da filha e morreu anos depois (Foto: Carlos Costa/ O Popular)

Depressão

Apesar de terem sobrevivido na época, Ivo e Devair se sentiam culpados pelo acidente, tiveram depressão e, segundo Odesson, perderam amor pela vida. Eles morreram anos depois.
“O Ivo passou a fumar seis maços de cigarro por dia, muito retraído, cabisbaixo, não fez questão de lutar pela vida, morreu novo com enfisema pulmonar, por revolta. Assim como o Devair, que morreu com cirrose, se achava culpado pela família toda ter ficado contaminada”, lamenta Odesson.
 
Tio de Leide e irmão de Ivo, Odesson Ferreira tem sequelas do contato com o césio (Foto: Vitor Santana/G1)
Tio de Leide e irmão de Ivo, Odesson Ferreira tem sequelas do contato com o césio (Foto: Vitor Santana/G1)
 
Mãe de Leide, Lourdes das Neves sobreviveu. Porém, ainda sofre muito ao relembrar da tragédia e, por isso, preferiu não dar mais entrevistas neste período. Além dela, dois irmãos da criança estão vivos, sendo que um deles não chegou a ser contaminado.
Luiza Odet conta que a tragédia "mexeu com o psicológico de todo mundo". "Ainda existe preconceito, pessoas más informadas. Ainda falo sobre isso porque isso não pode cair no esquecimento. Nós sofremos emocionalmente, fisicamente", conclui.
 
Marido de Luiza Odet, Kardec Sebastião dos Santos sofreu radioqueimaduras no braço por causa do contato com o césio e teve de fazer enxerto em Goiânia, Goiás (Foto: Paula Resende/ G1)Marido de Luiza Odet, Kardec Sebastião dos Santos sofreu radioqueimaduras no braço por causa do contato com o césio e teve de fazer enxerto em Goiânia, Goiás (Foto: Paula Resende/ G1)
Marido de Luiza Odet, Kardec Sebastião dos Santos sofreu radioqueimaduras no braço por causa do contato com o césio e teve de fazer enxerto em Goiânia, Goiás (Foto: Paula Resende/ G1)
Além de perder amigos e parentes, as pessoas contaminadas perderam bens, de roupas à casas inteiras. Luiza Odet, por exemplo, restou com poucas foto da época, que foram descontaminadas pelos técnicos.
Ao todo, são 6 mil toneladas de restos infectados. O espaço onde estão os rejeitos fica de uma área de 32 alqueires, dentro do Parque Estadual Telma Otergal, às margens da BR-060. Lá foi construído o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste (CRCN-CO).
Quer saber mais notícias de todo o estado? Acesse o G1 Goiás.
 
Kardec e Luiza Odet se consideram sobreviventes e lidam juntos com as consequências da tragédia com o césio-137 (Foto: Paula Resende/ G1)
Kardec e Luiza Odet se consideram sobreviventes e lidam juntos com as consequências da tragédia com o césio-137 (Foto: Paula Resende/ G1)
 
G1

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