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Com dois novos trabalhos, José Luiz Passos brinca com gêneros e fortalece sua bibliografia

por Bolívar Torres - Agência O Globo

O escritor José Luiz Passos: "somos campeões em colher os louros do sacrifício alheio"
Professor de Letras e "aspirante a romancista", como ele modestamente se define, José Luiz Passos está acostumado a navegar nos limites entre o ensaio e a ficção. Alternou a escrita de livros sobre Mário de Andrade ("Ruínas de linhas puras", 1998) e Machado de Assis ("Romance com pessoas", 2014) com a de romances elogiados pela crítica ("O sonâmbulo amador", vencedor do Prêmio Portugal Telecom, atual Oceanos, em 2013), e flertou com o ensaio ao refazer ficcionalmente a trajetória de Floriano Peixoto em "O marechal de costas" (2016).

Agora, o escritor pernambucano, de 45 anos, deu um passo ainda mais radical no embaralhamento dos gêneros, com duas obras altamente experimentais, lançadas quase ao mesmo tempo.

Em "Antologia fantástica da República brasileira" (Cepe Editora), ele faz uma colcha de retalhos sobre a história da república no País, costurando vários gêneros literários - desde minibiografias de revolucionários a textos de outros escritores e ensaios próprios. Inclassificável, o conjunto pode ser chamado de "romance" pela falta de uma palavra melhor, mas também pelo processo, muito autoral, de colagem das aparas.

"A órbita de King Kong", por sua vez, reconstrói a história real de Ham, o primeiro chimpanzé a retornar vivo após realizar testes psicomotores num voo suborbital da Nasa, em 1961. Treinado pela Força Aérea para o projeto Mercury 2, foi o primeiro hominídeo a entrar em órbita. Compondo a curta novela de pouco mais de 70 páginas a partir de dados enciclopédicos e relatórios da Nasa (e ilustrações da designer Raquel Barreto), Passos entra na mente de Ham e lê seus pensamentos durante a missão - algumas passagens são narradas pelo próprio macaco.

"Ambos são livros ficcionais sobre figuras reais, ou pessoas reais, que se encontram em situações-limite", diz Passos, PhD em Letras pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), onde reside há mais de 20 anos. "Nos dois livros, procurei explorar essa sensação de fragilidade do sujeito diante de grandes ideais ou de instituições que deveriam promover o progresso ou a coisa pública e, na realidade, acabam sacrificando os envolvidos, os participantes mais vulneráveis, os cidadãos que estão do lado de fora e que são convidados a entrar na república por pura formalidade, sem nenhuma intenção de que realmente venham a fazer parte do futuro".

Expansão

Originalmente, "Antologia fantástica da República brasileira" deveria reunir textos e documentos históricos descobertos por Passos na pesquisa para "O marechal de costas", que abrange o período da República da Espada, de 1889.

A vontade de escrever sobre vários períodos o fez expandir a proposta. Revisitando as nossas revoluções (desde a de 1817, que durou só três meses), o autor pensa a república "como um problema ao mesmo tempo público e privado, a partir da maneira pela qual personagens imaginam o que seria o bem comum, ou o seu fracasso".

Embora a ideia de fracasso esteja onipresente no livro, ele não planejou fazer, todavia, um julgamento sobre o nosso projeto de república. "O livro não oferece um diagnóstico nem uma resposta para o Brasil de hoje", pontua. "Pessoalmente, o que vejo agora é a falência de uma classe política que deveria ter garantido a instituição de um Estado democrático de direito, e contribuído para a organização de uma sociedade de cidadãos reconhecidos, na teoria e na prática, como iguais entre si. Hoje nos deparamos com uma imagem bastante frágil da igualdade democrática. O que a 'Antologia...' propõe é um passeio na pré-história, ou no inconsciente, dessa falência", observa.

Vulnerabilidade

Quem não fracassou, por outro lado, foi Ham. O macaco não só completou sua missão, como foi aposentado como astronauta e enterrado com honras militares. Seu heroísmo, porém, é todo involuntário; ao resgatar sua trajetória, Passos mostra um personagem sempre arrastado pelos desígnios dos outros.

Capturado por caçadores em Camarões, foi vendido aos três anos de idade para a Força Aérea americana por US$ 457. Depois, treinado à força e enviado ao espaço. Voltou de lá com a saúde debilitada, sistema imunológico próximo ao de um paciente em quimioterapia, e foi parar em um zoológico. Além da vulnerabilidade diante do destino, Passos também descobriu em Ham uma fragilidade física que o ligou ao personagem. Diagnosticado com câncer em 2016, leu os relatórios médicos da Nasa enquanto se submetia, ele próprio, à quimioterapia.

"Ham, meu King Kong de Camarões, c'est moi. Sou eu, é claro. Não sei como os chimpanzés pensam ou sentem. Mas me imaginei irmão dele, na sua fragilidade, subindo num foguete rumo a um destino que ele desconhece, encarregado de uma missão que não planejou, monitorado por um termômetro retal, estimulado por choques elétricos nas plantas dos pés, incumbido de acionar manivelas específicas, na hora certa, a fim de ganhar bolinhas de banana e água", descreve.

"A Nasa provou, pelo empenho de Ham, que um hominídeo era capaz de permanecer consciente e ativo na decolagem, em gravidade zero e na reentrada... O que Ham provou, na realidade, foi que somos campeões em colher os louros do sacrifício alheio".

Diário do Nordeste

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