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Novos protestos e declarações do ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, aquecem debate sobre arte no País

por Nelson Gobbi / Alessandro Giannini - Agência o Globo
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O ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, que recebeu a bancada evangélica ( Foto: Kid Junior )
Em meio à polêmica do veto à vinda da exposição "Queermuseu" para o Rio, um novo episódio colocou em xeque a liberdade artística na cidade. Prevista para ser inaugurada na quinta-feira (5) no Castelinho do Flamengo, Zona Sul da cidade, a quarta edição do evento "Curto-circuito" reuniria cerca de 50 artistas, performances e duas peças teatrais, "Bicha oca" e "Nasciturnos". Mas tanto artistas quanto público que foram ao espaço para assistir ao primeiro espetáculo, "Bicha oca", encontraram os portões fechados.
A justificativa da administração era de uma pane elétrica - um cartaz colado no portão informava que o local "está com a visitação suspensa". Julie Brasil, uma das artistas da mostra coletiva, que tem curadoria livre, acusa a prefeitura de censura.
"Todas as obras haviam sido aprovadas, mas, durante a montagem, nesta semana, começou a circular a possibilidade de censura, e dois trabalhos foram retirados. Hoje fui ao Castelinho do Flamengo para ver minha obra, que é cinética, e dei com os portões fechados. Lá dentro, outras obras tinham sido retiradas, e depois nos disseram que havia uma pane elétrica e que a exposição estava suspensa até segunda ordem", acusa a artista, autora da obra "Após a chacina, doamos os órgãos dos nossos filhos".
"Mas os computadores estavam funcionando normalmente, e as luzes dos andares superiores estavam acesas no início da noite. Foi um completo desrespeito com os artistas e com o público que chegava para ver a peça 'Bicha oca'".
O Coletivo FLSH afirmou que teve retiradas das paredes as fotos de "nus que expressam a diversidade entre os corpos, valorizando suas singularidades" e que aguarda ainda "posicionamento da prefeitura para esclarecer a situação, inclusive sobre o paradeiro das obras de arte".
"Houve censura contra obras com nu e outras que abordavam a violência, como uma tela com um mapa do Rio com pontos do tráfico de drogas demarcados. Isso é ainda mais grave porque estamos incluídos no 'Outubro da diversidade', programação temática criada pela Secretaria Municipal de Cultura. Que diversidade é essa que está sujeita a uma censura moral?", questiona Julie. Procurada, a Secretaria Municipal de Cultura não respondeu aos questionamentos até a conclusão desta edição.
Lei Rouanet
Em uma semana em que os debates sobre os limites da arte se tornaram mais acalorados e saíram da esfera dos museus para a política, o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, atirou mais lenha à fogueira.
Conforme adiantou na última quinta-feira (5) a coluna de Ancelmo Gois, no Globo, o ministro incluiu um artigo na minuta da regulamentação da Lei Rouanet, que veda a apresentação de propostas que "vilipendiem a fé religiosa, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes ou façam apologia a crimes ou atividades criminosas".
Para representantes de diferentes áreas do setor, a inclusão do artigo na lei abre um perigoso precedente para a censura.
"Achei que vivíamos em um estado laico, mas o Brasil se torna cada vez mais acanhado. Estamos presenciando uma espécie de ditadura coletiva, muito próxima do que foi o início do nazismo. A Alemanha dos anos 1930 também utilizou a publicidade para criar um estado de histeria coletiva, para conduzir as pessoas para um sentimento fanático", protesta o artista visual Ernesto Neto.
"Este tipo de censura vai inibir a criação e a imaginação, e qualquer produção depende disso para existir. É triste ver um país com tamanha riqueza que abre mão de suas referências multiculturais para se manter ligado apenas às europeias, e de uma Europa que nem se reconhece mais".
Para Eduardo Barata, presidente da Associação Produtores de Teatro (APTR), a medida parece "censura travestida de legalidade". "Tudo depende do ponto de vista. Fazer uma peça em que Jesus Cristo é travesti é vilipendiar a fé religiosa? Se a novela da Gloria Perez for transcrita para o palco, isso vai configurar apologia ao crime? Uma obra de arte não pode ter esse tipo de amarra. Nossos projetos são avaliados por técnicos. Com uma recomendação dessas vai ser difícil aprovar qualquer coisa. O único acesso que a gente tem a fomento de cultura é pela Lei Rouanet. Vamos ter que ir para a Justiça?", critica.
O ministro também se envolveu em outra polêmica: em vídeo publicado hoje por Juliana Braga na coluna de Lauro Jardim, no Globo, Sá Leitão comenta, numa reunião com a bancada evangélica, organizada pelo deputado Sóstenes Cavalcante, que, no seu entender, a performance "La bête", no MAM-SP - na qual uma criança acompanhada da mãe tocou nas mãos e pés do coreógrafo Wagner Schwartz, nu - "apresenta um claro descumprimento do que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente".
Sá Leião também falou da exposição "Queermuseu", suspensa em Porto Alegre, ao defender a necessidade da classificação indicativa em eventos de artes visuais. O ministro, que admitiu não ter visto a mostra e somente ter tido acesso a imagens isoladas, disse que não havia formado juízo sobre seu conteúdo, mas que "cabe às pessoas que tenham se sentido ofendidas que recorram à Justiça, e a Justiça que se pronuncie".
"É uma posição muito infeliz. Ainda que ele a coloque como uma opinião pessoal, dita pelo ministro da Cultura tem outro peso. Ele está fazendo um juízo de valor sobre uma exposição que não viu, fazendo coro a esta cruzada moralista. Abre um precedente perigoso", critica Gaudêncio Fidélis, curador de "Queermuseu".
Para o jurista e professor Lenio Streck, a sugestão do ministro agrava o processo de judicialização da arte, que resulta em episódios como o da peça "O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu", com a atriz trans Renata Carvalho no papel de Jesus, impedido de ser apresentado no Sesc de Jundiaí (SP), em 15 de setembro. "Há uma espécie de colonização do cotidiano pela Justiça. Estamos criando cidadãos de segunda classe, tutelados pelo estado", dispara.
"Há uma subjetividade na arte que não cabe ser avaliada pela Justiça, o bom ou mau gosto não está previsto em lei. Essa interpretação, em última instância, acaba sendo feita por quem julga o caso. Depende da subjetividade do magistrado", completa Lenio Streck.
Nota
Em meio ao clima hostil, um protesto com cerca de 30 pessoas em frente ao Palácio das Artes, que sedia a mostra "Faça você mesmo sua Capela Sistina", com obras de Pedro Moraleida (1977-1999), levou medo aos frequentadores. A manifestação foi encabeçada pelo deputado João Leite, derrotado na última eleição para a prefeitura de Belo Horizonte.
Procurado pela reportagem, Sérgio Sá Leitão não se pronunciou até o fechamento da edição. À coluna de Ancelmo Góes, o ministro enviou nota ressaltando que o Código Penal já considera crime o que foi destacado no artigo: "O que eu combinei com a bancada cristã é que, como estes temas já são configurados como crime, vamos reproduzir, sem uma vírgula a mais ou menos, na normatização da Lei Rouanet estes artigos do Código Penal".
Sobre o vídeo da reunião com a bancada evangélica, o ministro enviou nota à coluna de Lauro Jardim afirmando ter manifestado sua opinião "sobre este assunto enfatizando que foi em caráter pessoal, pois não sou juiz, jurista ou membro do Ministério Público; nem psicólogo", e que a "interação física de uma criança com um adulto nu que não é seu pai ou mãe, por indução direta da mãe, na frente de dezenas de pessoas, independentemente do contexto específico, configura uma situação potencialmente prejudicial ao desenvolvimento emocional dela e configura o descumprimento em maior ou menor grau dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente".
 
Diário do Nordeste

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