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O medo do futuro faz com que a sociedade deseje o retorno passado, alerta Bauman em livro póstumo

por Iracema Sales - Repórter
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Zygmunt Bauman deixou, entre seus papeis finalizados, o livro "Retrotopia", uma reflexão sobre o catastrófico tempo presente e o desejo de se retomar realidades e situações do passado. Obra chega às livrarias pela Zahar
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A expressão de espanto e temor diante do desconhecido captada no olhar do "Angelus novus", pelos traços sensíveis do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), desenho realizado em 1920, sintetiza bem o desencanto dos habitantes da "sociedade líquida global". A analogia da obra, que ganhou o nome de "O anjo da história" do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), com a situação do mundo atual aparece em "Retrotopia", livro póstumo do sociólogo polonês Zigmunt Bauman (1925-2017).
Pela concepção de Bauman, o futuro pode ser também comparado a um país estrangeiro, citando seus protagonistas: os "millenials". Nome dado aos jovens que estão ingressando no mercado de trabalho, tendo como principais desafios incerteza e precariedade. Eles formam a primeira geração pós-guerra a expressar mais medo de perder, do que elevar o status social conquistado pelos pais. Com visão niilista diante do que está por vir, esperam piores condições de vida, "em vez de pavimentar o caminho para as melhorias que marcou a história de vida de seus pais", exemplos de pessoas que apostaram no trabalho como forma de ascender socialmente.
O cenário do reino da "retrotopia" nada tem de fantasia. A vizinhança é repleta de estrangeiros, "sinal visível e tangível de certezas que se evaporam e de perspectivas de vida - bem como o destino de lutar por elas - que escapam ao controle". Eles são como reflexos do medo escondido no mais íntimo eu de cada um dos integrantes da geração "millenial", enxergando nesses visitantes indesejados, fragilidade e instabilidade de vida. Não escondem o temor de que se organizem para defender suas identidades, representadas nas crenças e ideologias políticas. A noção de que o futuro era o terreno da liberdade, dando a ideia de que tudo pode acontecer, foi substituída pelo passado, representando algo que não pode ser mudado, porque já aconteceu.
Globalização
O sociólogo denuncia o que chama de "globalização da humanidade", referindo-se à existência de 1 bilhão de pessoas que estarão deslocadas, dentro de quatro décadas. Ou seja, serão pessoas sem nenhum lugar. Os efeitos nefastos da globalização, iniciada no capital, saltou das notícias de TV para a vizinhança, gerando desconfiança e medo no outro, como acontece na Europa e Estados Unidos, com a recrudescência do terrorismo. "A cura radical última está além do alcance de qualquer país individual, por mais e mais poderoso que seja. E para além mesmo de uma assembleia de países como a União Europeia - quer confinemos os migrantes em campos construídos na Europa, na África ou na Ásia, quer os deixemos desaparecer na águas do Mediterrâneo ou do Pacífico".
Numa narrativa que mistura perspicácia e erudição à uma pitada de acidez, o autor, que morreu em janeiro deste ano, mostra que as "Teses sobre o conceito de história", de Benjamin, continuam atuais. "Os anjos" contemporâneos tentam fazer o caminho de volta - à sociedade tribal ou ao aconchego do útero - como se rejeitassem o futuro. Agora, esse tempo, que já foi associado às benesses propiciadas pela era moderna, aparece como pesadelo.
No imaginário da atual geração, o amanhã é composto pelo medo de perder o emprego, casa, amigos, solidão ou lugar social. A solidariedade também faz falta no mundo dos "retrotopistas", que preferem as amizades virtuais às reais, deixando de lado a cultura do diálogo. Critica o apartheid propiciado pela proliferação da internet e das redes de TV a cabo, gerando "enclaves de unanimidade".
Na obra, dividida em quatro partes, o autor analisa o neologismo "retrotopia", definido como "a utopia do passado", sob diversas óticas. O ponto de partida é a literatura, lembrando da ilha Utopia, criação do inglês Thomas More, em 1516. Com o olhar de um dos mais significativos pensadores e críticos da "modernidade líquida", Bauman ressalta a situação de penúria na qual se encontra a sociedade, principalmente, após a consolidação da onda neoliberal mundo afora. O autor de "Modernidade líquida" resume a realidade no veredicto da ex-primeira ministra do Reino Unido Margaret Thatcher, ao sentenciar que "não há alternativa".
E é justamente essa reflexão que toma conta dos sobreviventes do "mundo líquido moderno", que não têm mais o que perder. Nem a ganhar, uma vez que as conquistas do Estado do bem-estar social se esfacelam. Em alguns países, elas sequer chegaram. "O que eu chamo de retrotopia é um derivado do já mencionado segundo grau de negação - a negação da negação da utopia", sentencia, fazendo alusão ao legado de Thomas More, cujo conceito serve de arcabouço para a criação do sociólogo. "Eu pretendo dar sequência a esse breve esboço dos meandros mais notáveis da história pós-More de quinhentos anos da utopia moderna com um exercício que busca deslindar, retratar e registrar algumas das mais notáveis tendências de volta para o futuro no seio da fase retrotopista". O autor remete ao modelo tribal de comunidade, como um dos elementos a entrar na formação do conceito, que desperta o desejo de estar junto. Considera a solidão um dos piores males da contemporaneidade. "Na era do fast-food e do telefone celular, as ultrapassadas habilidades de socialização são esquecidas ou enferrujam depressa pela falta de prática".
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No entanto, parece contraditório, justificando o mundo estar vivendo momento marcado pelo fechamento de fronteiras e medo do outro. "Nós estamos agora neste século diferente. Os motivos que dirigem a dialética dos relacionamentos indivíduos versus grupo (uma espécie de amor-ódio pelo impulso de segurança de pertencer e o poder magnético da autoformação autônoma) criando laços e cortejando o divórcio de forma intermitente. O desenvolvimento da comunicação midiática cria novas formas de ação e interação, e novos tipos de relacionamentos sociais os quais ostentam uma gama de características que os diferenciam da interação face a face".
Sempre de olho nas transformações sociais, Bauman admite a influência das tecnologias digitais, a partir das últimas décadas dos anos 1900. "O advento da internet acrescentou, contudo, uma nova tendência ao processo que marcou o ambiente simbólico dominado pela televisão: o processo de dissipação de recursos, o qual, apesar do aumento em curso do poder dos conglomerados da mídia, assiste ao estabelecimento do regime de pluralismo regulamentado", caracterizado pela reinvenção do que é público.
O sociólogo convida a uma análise minuciosa do quadro. "Se examinássemos de perto o quadro de Klee, quase um século depois de Benjamin ter registrado seu insight incomensuravelmente profundo e incomparável, nós captaríamos o Anjo da história mais uma vez em pleno voo. Entretanto, o mais impressionante para o observador talvez seja a mudança de direção do anjo - o Anjo da história foi apanhado em plena guinada de 180 graus: seu rosto está se virando do passado para o futuro, suas asas são empurradas para trás, desta vez por uma tempestade e temido de antemão, na direção do paraíso do passado (como sem dúvida ele é retrospectivamente imaginado, depois de ter se perdido e arruinado, embora elas sejam impelidas agora, como eram empurradas antes, com uma violência tão intensa que o anjo não consegue mais fechá-las". Numa época em o sonho deu lugar ao desencanto, fica difícil imaginar o futuro, daí a invasão dessa onda retrô, verificada com bastante evidência na arte e na moda. Agora, passa a ser incorporada à vida das pessoas, cada uma apegando-se ao que restou do seu passado. O medo do futuro, representado hoje, não pelas sedutoras promessas do progresso, mas pelas perdas das conquistas do estado do bem-estar social, faz com que as pessoas reverenciem esse sentimento de nostalgia.

Diário do Nordeste

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