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O universo sonoro do maracatu

por Roberta Souza - Repórter
Maracatu
A menos de um mês para os quatro dias de carnaval, os barracões de maracatu em Fortaleza estão a todo vapor. Entre um corte e costura de figurino, um ensaio na rua tendo a comunidade como plateia, e pausas para resolver burocracias financeiras sem as quais fica difícil desfilar na Avenida Domingos Olímpio. Cada grupo tem uma música-guia, a chamada loa de maracatu, que carrega uma temática e um batuque específico todo ano. Em 2018, a religiosidade, a cultura afro e a luta contra o racismo refletida na imagem de Nelson Mandela serão algumas das histórias tocadas e cantadas pelos 15 grupos registrados pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor).
A frente do Maracatu Solar, o cantor e compositor Pingo de Fortaleza segue o raciocínio dos anos anteriores, priorizando como tema uma entidade das religiões de matriz africana. Desde 2015, o Solar homenageia um orixá. O primeiro tema dessa seleção foi "Oxum de Mim". Em 2016, "Quem é Ogum"; em 2017, "Eparrey Yansã Oyá"; e, agora, os brincantes se dedicam ao "Axé Oculto de Ossaim". "Isso é para fortalecer o vínculo dessa manifestação com sua matriz, inclusive a religiosa, pois o maracatu, mesmo como instituição carnavalesca, tem essa essência. Assim contribuímos com a difusão e reconhecimento desse universo e também contribuímos na luta contra a intolerância religiosa", reconhece Pingo de Fortaleza.
"Ossaim feiticeiro/ O pai das matas/ Senhor que cura/ Com as folhas sagradas/ Ele tem a força/ Das entranhas da terra/ Com Oxossi e Ogum/ Defende a floresta", diz um trecho da loa. A letra faz referência ainda a mezinheiros (fazedores de remédios com plantas medicinais), rezadores e entidades indígenas. A canção vai integrar o CD "Loas e Canções - Pingo de Fortaleza e Descartes Gadelha" a ser lançado ainda em janeiro.
Segundo Pingo, são os próprios brincantes que solicitam temas como esse. "O de Yansã, por exemplo, foi uma solicitação dos filhos desse Orixá que participam do Solar", conta. Na hora de escrever letra e música, é com seu parceiro Descartes Gadelha que ele se reúne. E isso costuma acontecer logo que um carnaval finda.
Influência
Pingo de Fortaleza lembra que, antes de tudo, o maracatu já tem seu enredo ou tema padrão, que é a representação simbólica de um cortejo de coroação de uma rainha negra. "Mas, influenciado pelas competições das escolas de samba, ele ganhou, com o passar dos anos, esse enredo ou tema complementar. Contudo, acho inspirador e estimulante, e uma grande oportunidade de tratarmos assuntos correlatos a essa manifestação, além de impulsionar os processos criativos de várias linguagens, como música, dança, figurinos", defende.
Nesse contexto, a Loa ou macumba (como chamavam na década de 1940) é a base dessa engenharia criativa. Definida ela, o maracatu começa a trabalhar outros aspectos, como coreografias, alegorias e figurinos. O Nação Baobab, por exemplo, vai homenagear Oxum esse ano, e isso é valorizado em todos os sentidos. "Sairemos de amarelo, com um manto dourado e muitas imagens. Mamãe Oxum simboliza a maternidade, a renovação. Esse tema veio como um mantra, singelo, tocante, forte. É a mensagem de paz, de amor ao próximo. Nossa cultura não pode acabar, temos que continuar sendo felizes mesmo passando pelas dificuldades", argumenta a presidente Maria Janaína Severo.
O sincretismo também pode ser percebido nas loas de 2018. O Maracatu Axé de Oxossi traz isso com uma homenagem a Nossa Senhora Aparecida. "Aparecida das águas/ Do porto Itaguaçu/ Padroeira da nossa pátria/ Protegei nosso maracatu/ Dai-nos a bênção/ Oh mãe querida/ Nossa Senhora Aparecida...", diz o trecho do refrão composto por Descartes Gadelha e Inês Mapurunga.
Já a cultura afro e sua história são reforçadas nos temas dos Maracatus Rei de Paus e Nação Iracema, por exemplo. O primeiro canta "Somos Bantos Afrobrasileiros, Somos Maracatu", enquanto o segundo dedica-se a uma sequência voltada para os folguedos da cultura negra no Ceará. "Esse ano vamos trabalhar o folguedo lá de Salitre, cidade perto do Crato. Trazemos a história de um vaqueiro que corre atrás de um boi, e toma banho numa lagoa encantada. É uma lenda da comunidade quilombola. A loa é do João do Crato", contextualiza o presidente do Nação Iracema, William Augusto Pereira.
Direitos humanos
O maracatu Nação Fortaleza, por sua vez, optou por homenagear Nelson Mandela em 2018. A escolha se deve tanto pela comemoração de seu centenário de vida como também pela luta contra o racismo que seu nome evoca. "Ao eleger o tema em homenagem ao líder sul-africano Nelson Mandela, por ocasião do seu centenário de nascimento, o Maracatu Nação Fortaleza pretende também oportunizar uma discussão aprofundada sobre o racismo, mostrando através da temática do desfile a trajetória de um personagem que lutou durante toda a sua existência pela igualdade racial em seu país, tornando-se um incansável defensor dos direitos humanos", diz o texto de apresentação da loa.
"Madiba é Nelson Mandela/E Nelson Mandela é o sol da liberdade/ Viva Mandela/ O que defendeu o povo/ Pra viver um mundo novo/ Sem racismo e opressão/ Viva Mandela/ Que é a chama que nos guia/ Que trouxe o clarão do dia/ No tambor do coração", expressa a letra do compositor e presidente do Nação Fortaleza, Calé Alencar.
O desafio dos maracatus vai desde a difusão dessas ideias até a preservação e a documentação desses processos. E, nesse contexto, o desenvolvimento de iniciativas públicas e/ou oxigenadas pelos próprios grupos tornam-se a cada dia mais fundamentais.

Diário do Nordeste

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