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Preservação de acervos mantém memória literária

Manuscritos, presentes no Acervo do Escritor Cearense: iniciativas ajudam a preservar materiais que dão testemunho da vida criativa de autores, bem como sobre o seu tempo e a sociedade em que viveu (FOTO: THIAGO GADELHA)
Max Brod recebeu uma missão ingrata de Franz Kafka. O escritor tcheco havia escolhido o amigo de infância como executor de seu testamento. Por orientação do documento, cabia ao próprio Brod a tarefa de queimar os manuscritos de Kafka, morto em 1924, quando contava apenas 40 anos. Brod não fez o que lhe foi pedido; se recusou a perpetrar o que considerou "um ato criminoso". O problema ético de sua recusa é debatido até hoje. Mais pacífico é o reconhecimento que ele salvou parte da obra de Kafka. Se hoje lemos "O Processo" e "O Castelo" - trabalhos que Kafka deixou inacabados, mas que integram seu cânone e têm um lugar destacado na história literária que vai além daquele reservado a meros rascunhos - deve-se a esse ato de traição.
Max Brod respondeu a seus críticos evocando a paixão pelos escritos de Kafka, reconhecida por este, de forma que o autor deveria estar ciente que pedia algo impossível de ser realizado pelo amigo. Foi um fator emocional que fez com que Brod adotasse um cuidado que, em não poucos casos, foi racionalizado por outros tantos escritores, artistas e figurões para além do mundo da cultura; ou por figuras como a dele, amigos e familiares, cientes de que aquilo tudo era valioso demais para ser consumido pelo fogo, pelas traças ou pelo tempo. Mais ou menos premeditados, nascem assim os arquivos literários, tendo em sua origem uma recusa - à destruição e ao esquecimento. 
O interesse, sobretudo em autores com alto valor comercial para as editoras, fez com que muitos arquivos fossem mantidos mundo a fora. Colecionadores particulares procuram arrebatar papéis e objetos valiosos; mas são as universidades o ambiente mais comum e propício a este tipo de material. No Ceará, iniciativas recentes têm contribuído para a manutenção de acervos literários de grandes nomes de nossa vida intelectual. E não é menos importante a permanência, no Estado, desta matéria carregada de memória.
Matéria-prima
Um arquivo literário deve, inicialmente, evocar aos não especialistas um amontoado de papéis deixados por um autor. A realidade, contudo, não é simplória. Primeiro, porque muitos destes arquivos são construídos - e abertos ao público (em especial, os pesquisadores) - quando o autor ainda vive, por iniciativa do mesmo. O potencial de ampliação deste acerto, claro, é maior. Outro ponto importante é que um arquivo está ligado à história. E a forma com que essa compreende os documentos muda. Assim, um arquivo pode conter manuscritos, mas também datiloscritos e cópias cujos originais são digitais; além de fotos, documentações pessoais, objetos de diversas ordens; e livros. Sua organização costuma dizer muito de quem os reuniu; e, se estão anotados, tanto mais.
Contemporâneos
Instituição de referência quando o assunto são acervos literários, o Instituto Moreira Salles (IMS), sediado no Rio de Janeiro, reúne uma vasta documentação de autores importantes, reconhecidos nacionalmente, como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles. Está lá, também, desde 2006, o Arquivo Rachel de Queiroz, reunindo documentos pessoais que ajudam a contar a trajetória de vida e profissional da escritora cearense.
Contudo, um parceria entre o IMS e a Universidade de Fortaleza (Unifor) permitiu que uma grande parte deste arquivo voltasse ao Ceará, no começo do ano passado. Em janeiro de 2017, foi transferida para a Unifor a biblioteca de Rachel de Queiroz, que tinha chegado ao IMS com o arquivo, contando 3.542 itens. E poucas coisas podem falar tanto de um escritor quanto sua biblioteca, um instrumento de trabalho que dá o testemunho como os dos hábitos de leitura, com suas zonas de interesse e suas conexões, pessoais e profissionais, com seus pares.
O acervo da escritora - Biblioteca Rachel de Queiroz, em sua designação oficial - fica nas dependências da Biblioteca Central da Unifor. A instituição ainda mantém uma, de Acervos Especiais, que inclui raridades de valor histórico e bibliográfico.
A Universidade Federal do Ceará (UFC) também mantém um projeto do gênero, dedicado à memória das letras cearenses. Criado em 2005, o Acervo do Escritor Cearense reúne quatro fundos - além de materiais não pertencentes a estes, mas ainda no campo da memória literária. Os fundos dos escritores Moreira Campos e Natércia Campos foram os primeiros a chegar, seguido dos arquivos de Gilmar Carvalho (único autor vivo do acervo) e de Antonio Girão Barroso. O material, disponível para pesquisadores, fica localizado na Biblioteca do Centro de Humanidades, no Benfica.
Diário do Nordeste

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