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Depois de desprezar Philip Roth, é irônico Nobel de Literatura ser adiado após crise com assédio

Maurício Meireles
SÃO PAULO
Sara Danius, ex-secretária-permanente da Academia Sueca
Sara Danius, ex-secretária-permanente da Academia Sueca - TT News Agency/Jonas Ekstromer/Reuters
Os admiradores de Philip Roth verão a ironia no escândalo que resultou no cancelamento do Prêmio Nobel de Literatura deste ano.
Em nossos tempos, Roth é possivelmente a ausência mais inexplicável na lista de vencedores do principal troféu literário do mundo. A Academia Sueca, que o concede, delibera em segredo —então só se pode conjecturar sobre os motivos.
Mas há explicações prováveis. Roth acumulou polêmicas por aí. Brigou com os judeus, pela forma como os representou, e foi acusado de machismo.
Ele é um escritor que mergulhou na fúria erótica humana, analisou o desejo masculino —mas os homens em sua obra são os piores seres humanos, com frequência dilacerados por esse mesmo desejo ou pela decrepitude do corpo.
É uma masculinidade em sofrimento, mas não pegaria bem dar o prêmio a alguém que representou tantos velhos tarados.
A ironia é a Academia Sueca, que falhou em reconhecer a qualidade literária dessa exploração do desejo, não ser só a vítima do comportamento sexual abusivo de um homem próximo da instituição mas também, ao que tudo indica, ter trabalhado para acobertá-lo. Poderia ser um romance de Roth.
Chegou-se ao ponto de cancelar o prêmio neste ano depois de denúncias de assédio e abuso feitas por 18 mulheres em um jornal sueco contra Jean-Claude Arnault, alguém com 30 anos de relações afáveis com a academia. Ele é marido de Katarina Frostenson, integrante da instituição.
Uma delas disse que o denunciou à instituição sueca e não deu em nada.
Arnault, que nega tudo, foi acusado ainda de vazar nomes dos vencedores do Nobel de Literatura —e possivelmente ganhar dinheiro com isso. Ele e a mulher gerem um centro cultural que recebia dinheiro da Academia Sueca.
A tentativa fracassada por parte dos membros de expulsar Frostenson resultou na saída de diversos deles — entre os quais Sara Danius, primeira mulher à frente da instituição.
O que muda para a literatura? Nada. Pelo menos não para a literatura que vale a pena, do escritor que compõe uma obra em compromisso consigo e com seu impulso de expressão, em luta com a forma literária. Esse sabe que escrever para prêmios seria uma derrota para a literatura.
Sim, o Nobel já reconheceu grandes autores. Mas, mesmo para o estabelecimento de um cânone literário —categoria tão questionado hoje—, seu papel pode ser relativizado. Senão, como explicar que Tolstói, Borges, Proust e outros nunca tenham sido eleitos?
Os únicos efeitos da não atribuição do Nobel neste ano são sobre a circulação e a divulgação de livros —numa sociedade em que a literatura sofre de grande desprestígio, diga-se.
O comércio global também se dá mal. Neste ano, um agente literário não terá a chance de vender um autor para dezenas de países ao mesmo tempo, e editores não poderão fazer pilhas com o ganhador nas livrarias. Paciência.
Folha UOL

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