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Pintura: a linguagem que existe dentro de si

A noção de que um artista seria um ser iluminado, e distinto da maioria da humanidade, trouxe, para o senso comum, a ideia de que criar uma obra de arte é algo para poucos ("bem nascidos" e talentosos). Seguindo n'outra direção, a relação entre arte e terapia admite a criação artística como algo mais acessível. Através do exercício da arte-terapia, terapeutas e pacientes (minimamente afinados com alguma linguagem artística) desenvolvem a criatividade e a possibilidade de perceber a si mesmos por meio dessas criações.
Na base do caminho da arte-terapia no Brasil, as artes visuais (pintura, desenho, escultura) se tornaram a referência mais consolidada dessa prática. A ideia que a criação do desenho ajuda a "estruturar" o psiquismo dos pacientes e a materialidade desse processo criativo justificam, em parte, o apelo da linguagem na direção da cura das questões psicológicas de cada indivíduo.
Para o educador artístico e arteterapeuta Genivaldo Macário, 54, um dos facilitadores da formação em arteterapia em Fortaleza (existente há 17 anos, através do Instituto Aquilae), "o desenho e a pintura são códigos cifrados. Na condição de arteterapeuta, a gente vai facilitando para que o nosso cliente decifre esses códigos e se depare com ele mesmo", resume.
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Trabalhos desenvolvidos por artistas atendidos pelo arteterapeuta Genivaldo Macário, do Instituto Aquilae (FOTO: JL ROSA)

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Genivaldo observa que, à medida que as pessoas desenham no papel, o resultado revela algo que veio "de dentro pra fora". "E é nessa condição, tomando consciência de si, daquilo que ele faz, do que ele representou, que os 'deslocamentos' vão acontecendo. Seus níveis de percepção, de sensibilidade, vão se ampliando", complementa.
O arteterapeuta costuma incentivar a experimentação entre seus pacientes, tanto na formação (para arteterapeutas), quanto na situação clínica de atendimento individual. A ideia de "experimentar" é justamente descolar a pessoa da noção de que uma criação artística só pode existir se for "excelente" e habituada a determinados padrões estéticos.
A vivência do paciente se torna mais relevante, nesse sentido, do que o resultado do produto. Genivaldo Macário não diminui a importância dos conceitos que envolvem a criação de uma obra artística. No entanto, ele enxerga outro caminho, para além dessa "excelência".
"Os conceitos são importantes, porque quando eu lhe convido a produzir uma obra, estou te convidando a realizar algo para que você dê conta de um produto. Mas quando chamo para 'experimentar', o convite é para fazer algo que tem uma leveza maior. Quem experimenta não erra", reflete o arteterapeuta.
Genivaldo conta que a escolha pela experimentação também tem, para ele, validade científica. A conclusão é de sua tese de Doutorado, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Levantava uma questão sobre por que a arte não decola na escola. A arte não decola na escola, ou em qualquer lugar, a partir da hora em que ela é imposta. Quando te convido a experimentar, você passa a ter autonomia (de criação)", sugere.
Poética
A prática da arteterapia envolve uma pergunta: "qual é a sua poética?". Segundo Genivaldo Macário, identificar a poética artística e pessoal de um paciente é descobrir, basicamente, qual seria o "pano de fundo" das criações do indivíduo.
"Quando a gente pensa na palavra poética, vem de 'poiesis', de 'criar', 'criação'. Todo ato criativo está atravessado de conteúdos daquele sujeito. Qualquer sujeito, artista ou não, ao se expressar através dos materiais, vai trazer ali conteúdos seus", especifica. Para o arteterapeuta, se o paciente produz a partir de sua própria poética, a experiência artística ganha potência.
Técnica
Para expressar essa potência, Genivaldo Macário pondera e avalia a relevância da técnica nesse processo terapêutico. Por mais que a experiência da arteterapia não tenha a pretensão de "formar" artistas profissionais, ele admite que ter certo domínio da linguagem das artes visuais facilita na hora de se expressar.
"Você entra na escola sem saber ler, não sabe as letras. Mas entra desenhando, fazendo garatujas. Quando o cliente chega, eu não toco em nada de técnica. Mas o que faço? Levo o sujeito a rabiscar de olhos fechados, encontrar formas, aprender a usar os espaços. E ele vai aprendendo a olhar, a dizer 'adoro essa cor, não gosto daquela cor'. A pessoa vai adquirindo autonomia pra fazer aquilo que ela quer", sintetiza o arteterapeuta.
Com essa autonomia direcionada, Genivaldo detalha que trabalha em um processo de "alfabetização artística e estética" com o cliente. Ambos passam a explorar o ponto, a linha, conjuntos de frases que geram formas, luzes, volume. "E a pessoa vai se apropriando disso. Trabalho muito com aquela ideia: aqui não existe defeito, existe efeito (risos)", reflete.
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Diário do Nordeste

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