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Videoclipes: imagens e sons de uma era

por Antonio Laudenir - Repórter
Décadas atrás, ter acesso a MTV era realidade de uma minoria em Fortaleza. Na metade dos anos 1990, o serviço de televisão por assinatura ainda engatinhava no Brasil e o aquecimento no setor só alcançaria as camadas mais populares a partir da virada do século.
Nesse intervalo, o canal passou a ser transmitido em sinal aberto via UHF e a vida de uma molecada que era fã de música mudou radicalmente.
É certo que o sinal era medonho e muita gente recorria ao artifício de colocar palha de aço na antena para melhorar a transmissão. Mas nada diminuía a empolgação de acessar uma programação totalmente aversa ao mundo da TV aberta brasileira.
Além do conteúdo, surgiam outras possibilidades estéticas e comportamentais. No epicentro desse furacão, o videoclipe ditava as regras de uma nova maneira de se consumir música.
Sem muitos detalhes sobre as constantes modificações na indústria fonográfica desde então, um salto temporal nos leva aos dias atuais. Em maio de 2018, um videoclipe foi capaz de catalisar todas as atenções da mídia - o do single "This is America", de Childish Gambino, que provocou uma série de debates sobre temas sérios como racismo, violência e alienação das redes sociais. Disponibilizado no universo online no último dia 5, a cria de Gambino (pseudônimo artístico do ator, roteirista e músico norte-americano Donald Glover) suscitou inúmeras interpretações e teorias por parte do público. Diferentes cenas ou frames do vídeo dirigido por Hiro Murai foram dissecados e reverberados. A repercussão da obra ultrapassou o fator musical e consolidou-se como um manifesto contudente e repleto de referências a episódios vergonhosos da Terra do Tio Sam.
Parceiro de Glover em outros vídeos musicais e na série "Atlanta", do canal FX, Murai construiu um cenário devastador sobre sérios problemas sociais dos Estados Unidos, da segregação racial à cultura armamentista. Todavia, estas inúmeras referências históricas e sociais foram diluídas no vídeo de maneira crua e sem maiores explicações.
Sugerindo um plano sequência único, os primeiros segundos do vídeo parecem dar conta de uma música amistosa e solar. Um disparo na nuca de um violonista negro encerra qualquer tipo de idealização pop. Nos outros quatro minutos da faixa, Glover segue dançando e lançando expressões faciais desconectadas com a realidade onde canta. Sem camisa, serpenteia entre manifestações, ataques da polícia e sangue inocente arrancado por armas de fogo. Sem sabermos se o personagem central é perseguido ou simplesmente ataca, as convenções que fizeram do videoclipe um fenômeno cultural do último meio século são moídas e cuspidas longe.
O rapper induz ao espectador um mundo em constante desequilíbrio. Uma civilização em ruínas cuja a barbárie diária é consumida sem o menor crivo reflexivo. No meio da multidão, Gambino/Glover joga na cara a nefasta existência do Jim Crow, personagem teatral surgido no século 19 e que resumia todos os estereótipos dos negros escravizados. Analfabeto, amigável e deformado pelo trabalho forçado nas plantações, a figura de Crow simbolizou tempos depois a política de segregação racial implantada no sul do Estados Unidos, mesmo depois do fim da escravidão.
Plano
Um carro da polícia queima e motins explodem ao redor do ator. Totalmente alheios a este cenário, jovens com farda escolar encenam alguns passos em meio ao caos. A interpretação de Glover nos pede que ignoremos a violência ao redor. Ela é banalizada através de prazeres imediatos e o celular surge como canal de disseminação da alienação. Enquanto sorrimos e festejamos com a música, nas ruas a história é outra. Violento e criminoso, o contemporâneo é guiado pelo preconceito e horror do passado. Nada muda e o final do vídeo evidencia essa total desesperança em relação ao mundo.
O culto às armas de fogo, embaladas com liturgia após servirem a matanças, a total falta de empatia sobre a desgraça do outro e o inevitável desejo pela propagação de informações duvidosas na internet impregnam o pano de fundo do vídeo. A todo instante, diretor e ator desenham uma sociedade avessa à reflexão. "Isto é a América", mas pode também ser Brasil sem qualquer dúvida.
No terreno mercadológico, o trabalho de Glover em "This is America" reflete uma longa linhagem de videoclipes que seguem como testamentos da época em que foram produzidos. Na obra "Videoclipe - O Elogio da Desarmonia", do professor e pesquisador Thiago Soares, diferentes posicionamentos e análises da ferramenta videoclipe são construídos e esmiuçados.
Fruto do mestrado realizado pelo autor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o livro reúne tópicos sobre estética, autoria, fotografia, montagem, entre outros pontos relevantes sobre este produto. A apresentação assinada por Angela Prysthon (orientadora do pesquisador) organiza os aspectos entre experiência social e tecnologia.
"Nos seus mais variados aspectos, o videoclipe sintetiza o contemporâneo na sua aproximação da indústria cultural com a vanguarda, na diluição da radicalidade inovadora a partir de claras intenções comerciais, na sua fragmentação imagética, na sua despreocupação narrativa ou no apelo das narrativas mais básicas e simples, na sua inclinação parodística, na sua rapidez, no excesso neobarroco de alguns de seus estilos, nas suas conexões com as tecnologias de ponta, na sua recuperação displicente e desatenta do passado, nas suas superposições de espacialidades e temporalidades, no fascínio de uma superficialidade hiperreal", afere a docente.

Diário do Nordeste

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