Quem sabe dançar, arrocha nos passos. Quem não sabe, anima-se só de ouvir o forró, um estilo musical tradicional do Nordeste brasileiro cujo representante maior é, sem dúvida, o pernambucano Luiz Gonzaga.
Em meio a tantos lançamentos no mercado musical, as raízes dessa identidade cultural não secaram. Ao contrário, elas se renovam e continuam vingando por meio de pequeninas mãos que se apropriam da sanfona com seriedade, competência e muita alegria.São essas crianças e adolescentes, representando diversas cidades do Ceará (Juazeiro do Norte, Iguatu, Tauá, Caucaia, Redenção e Ocara), que estão reunidos neste Doc “Sanfoneirinhos”, intitulado assim, no diminutivo, não por ausência de talento, mas por terem começado cedo a tocar o instrumento.
Fãs dos mestres Luiz Gonzaga (1912-1989), Dominguinhos (1941-2013), Sivuca (1930-2006) e Waldonys, eles pegaram pela primeira na sanfona quando sequer tinham tamanho para manuseá-la. Hoje, com idade entre 10 e 20 anos, tocam, cantam e fazem sucesso em palcos do Ceará e até fora dele. Alguns gravaram CDs e DVDs, têm canais no You Tube e páginas nas redes sociais. Outros apostam em festivais e até assinam composições. E todos, apoiados pelos pais, valorizam igualmente os estudos no colégio.
Ao ver a intimidade deles com o instrumento, fica a certeza de que a essência do forró está em boas mãos, como nos revelam Cecília, Cícero Paulo, Claudizinho di Paula, Deisielly, Felipe e Rodrigo, Kayro Oliveira, Luís Porfírio, Maria Luiza e Sarah. Entre eles, o cearense Waldonys, 45 anos, cuja carreira foi credenciada por Luiz Gonzaga, é nome recorrente como fonte de inspiração.
Com propriedade, encontra facilmente razões para, até hoje, crianças e adolescentes se inspirarem no pernambucano quando iniciam a trajetória musical, mesmo tendo nascido, pelo menos, uma década depois do falecimento do Rei do Baião, em 2 de agosto de 1989, aos 76 anos de idade.
“Gonzaga tinha a capacidade de falar direto no coração das pessoas, ele tinha essa magia, essa sensibilidade. Por isso, é um artista que se renova, até os dias atuais, sem nenhuma forçação de barra, sem ser imposto. Naturalmente as pessoas que passam a conhecê-lo, passam a admirá-lo, isso é transmitido de geração em geração. Você vê que, com todo esse massacre, com toda imposição dessa coisa que vem goela abaixo, de forma massificada, da música popular brasileira, o Gonzaga vem resistindo, vem se mantendo”, avalia.
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Para o pesquisador, esses meninos e meninas são muito puros: "A gente percebe não tem aquela coisa de parar pra tirar uma foto, são desprovidos dessa maquiagem, eles são essência, têm um encanto que brilha, são muito confiantes, extremamente talentosos e encantadores. Eu sou apaixonado por eles”.
Aquela sanfona branca
Na adolescência, Waldonys recebeu um raro presente de Luiz Gonzaga, que enxergou no cearense um de seus seguidores mais talentosos. Ele já tinha sanfona, porém estava aquém das necessidades. Precisava de um modelo maior, mas o disponível no mercado era muito pesado para a sua estatura na época: “Seu Luiz foi até a casa do meu pai, e pegou no carro uma sanfona de 120 baixos, do uso pessoal, que era uma raridade, pois tinha um tamanho reduzido, e pediu para eu tocar”.
Sem pensar duas vezes, Waldonys fez um pout-pourri com sucessos do Rei do Baião: “Algodão”, “Pau de Arara”, “Paraíba” e “Qui nem jiló”, além do choro “13 de dezembro”. E mereceu o presente “Aí o seu Luiz falou: ‘Gostou da sanfona? É sua’. Encaixou no meu peito, perfeito, e a importância maior é porque ele não comprou para me dar, a sanfona era do acervo dele, aquele foi um dia que me marcou para sempre”.
Seguindo os passos do mestre, agora é Waldonys que repete o gesto. As famílias de Kayro Oliveira e Deisielly do Acordeon, por exemplo, não tinham condições financeiras para adquirir um instrumento de qualidade, mas o principal, na avaliação do sanfoneiro, foi o talento e o interesse das crianças. “É um filme que se repete, mas longe de querer me comparar a um mito que é o seu Luiz”, ressalta.
Ter uma sanfona quase sempre é desafio. O próprio Luiz Gonzaga, na adolescência, fez um empréstimo para comprar a primeira.Talvez por isso o homenageado por Benito di Paula com a música “Aquela sanfona branca” tenha sido tão generoso. “Ele deu mais de 100 sanfonas. Tinha uma coisa interessantíssima, a ideia de que precisava fomentar novos artistas, tanto forrozeiro, sanfoneiro quanto compositor. Ele viu Dominguinhos, quando tinha 8, 9 anos tocando com o irmão na Feira de Garanhuns, foi pro Rio de Janeiro, e, quando voltou, deu logo uma sanfona a ele”, afirma o pesquisador Paulo Vanderley.
Segundo o estudioso da vida e obra do Rei do Baião, por mais barato que o instrumento seja, custa hoje de R$ 3 a 4 mil. Um bom, do modelo que Dominguinhos tocava, sai entre R$ 20 e 25 mil. “Quando Luiz Gonzaga dava uma sanfona, sabia que estava dando uma oportunidade. Estava dizendo para aquele menino, 'olha, aprende a tocar, que estou acreditando em você'”.
Conquistas
As crianças e adolescentes entrevistados guardam histórias inusitadas com suas sanfonas. O pai de Cecília, por exemplo, organizou uma festa com sanfoneiros amigos (sem cachê) e o bingo de um garrote para conseguir comprar um instrumento melhor. O de Sarah Matias, diante do apelo da filha, trocou a própria bicicleta por uma sanfona velha. Sem recursos financeiros, o de Deisielly adquiriu a primeira em sociedade com um amigo, enquanto o de Cícero Paulo trocou um carro popular pelo instrumento igual ao de Dominguinhos, um sonho do garoto.
A conquista de Pedro Lucas Feitosa, 13 anos, foi mais fácil, mas nem por isso menos prazerosa. O menino fundador do Museu de Luiz Gonzaga, no Crato, ganhou um exemplar do amigo Hélio Diógenes, do Fã Clube Eterno Cantador. Porém, ainda não sabe tocá-la, sonho que pretende realizar em breve. Por hora, exerce o lado musical na banda “Os dois do sertão”, na qual comanda o triângulo e o primo Kaio, o zabumba.
Vivendo no interior do Ceará, inclusive na zona rural, esses meninos e meninas não se rendem à sequidão, à distância ou à falta de chances de frequentar uma escola de sanfona ou de canto. São persistentes, quase sempre assimilam as primeiras notas sozinhos. Outros aprendem com mestres particulares ou em escolas, como ocorre na Orquestra Sanfônica da Universidade de Fortaleza (Unifor) e na Vila da Música- Solibel, no Crato.
O importante, em qualquer cenário, é que os sanfoneirinhos semeiam notas de alegria e de esperança para preservar e difundir, entre as novas gerações, o forró, aquele que, nas palavras de Paulo Vanderley, só existe um: “O forró da matriz poética, criada e reinventada por Luiz Gonzaga. Na hora em que chamo forró pé de serra, eu assumo que o que essas bandas musicais fazem também é forró. Na verdade, não é errado chamar “pé de serra”, mas as pessoas o associam apenas ao trio (sanfona, zabumba e triângulo). Hoje, temos megashows de grandes sanfoneiros, originais, autênticos, como Waldonys, Chambinho, Santanna, Petrúcio Amorim e Chico pessoa.
Paulo Vanderley cita o próprio Luiz Gonzaga, que sempre se renovou. Registro significante está na música “O fole roncou” (Nelson Valença – Luiz Gonzaga), no LP homônimo de 1974, acompanhada por guitarra, baixo e bateria. “Tem de inovar. O grande problema da inovação é descaracterizar. Um disco de Wesley Safadão, que chamam de forró, não tem nenhuma matriz poética do forró”.
Diário do Nordeste
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