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Literatura e futebol sempre estiveram do mesmo lado do campo

Fosse vivo, o escritor e jornalista Eduardo Galeano teria cerrado as portas de casa antes de ontem. Por volta das 11 horas, pouco antes da 33ª partida da Copa do Mundo, pela qual Uruguai e Rússia se enfrentaram, afixaria uma placa na entrada com os dizeres: “Fechado por futebol”. E de lá não sairia até o final do dia glorioso, eufórico após a vitória da amada Celeste, que avança invicta às oitavas de final para o Portugal de Cristiano Ronaldo.
Um prato cheio pra Galeano. Autor de Futebol ao sol e à sombra, o uruguaio dizia que o esporte espelhava a vida. Não apenas jogo, mas espetáculo cujo desfecho representava o cruzamento do imponderável com a técnica. Como um bom livro, cada peleja guarda narrativa própria, ora injusta, ora trágica, ora de heroísmo, mimetizando a ficção e transbordando o real.
Escritor, jornalista e filósofo franco-argelino, Albert Camus também via no futebol esse amálgama de coletividade e indivíduo. Talvez o único goleiro da história a vencer não o troféu de um campeonato mundial, mas o Prêmio Nobel de Literatura (1957), Camus costumava responder a quem lhe perguntasse: “O que eu sei sobre a moral e as obrigações de um homem devo ao tempo em que joguei futebol”. Não exagerava.
Afastado dos gramados ainda jovem por uma tuberculose, o escritor passou a dedicar-se integralmente à literatura. As linhas dos campos e as das letras, entretanto, iriam se influenciar mutuamente, e mesmo sua posição no Racing de Argel, time pelo qual atuou na Argélia, antecipava a matéria-prima de que se serviria para escrever A peste e O estrangeiro: a solidão do homem em face da história que se desenrola diante de si.
Afinal, o goleiro tem perspectiva cinematográfica da batalha, o que faz dessa posição a mais literária numa equipe esportiva e ajuda a explicar o fato de outro craque da literatura também haver preferido esse lugar a qualquer outro entre as 11 escalações de um time. Natural de São Petersburgo, palco do jogo entre Brasil e Costa Rica na última sexta-feira, o russo Vladimir Nabokov também desempenhou a função de guardador da meta, assunto sobre o qual escreve no livro Fala, memória (Alfaguara). Ali, no espaço restrito da grande área, o autor de Lolita exercitou uma qualidade atlética e estética que depois usaria como escritor: a aguda consciência da movimentação dos jogadores-personagens como elemento vital numa partida.
A vida de arqueiro também renderia obras menos conhecidas, como O medo do goleiro diante do pênalti, romance do austríaco Peter Handke levado aos cinemas por Wim Wenders em 1972 no qual um homem comete um assassinato depois de uma suspensão na partida.
No país que inventou o futebol-arte, porém, é ainda escassa a tradição literária – do ensaísmo e da ficção – a tratar do esporte de Pelé, Romário, Ronaldinho e Neymar. Salvo na crônica, na qual pontifica Nelson Rodrigues, os cinco títulos do Brasil em Copas do Mundo não ajudaram a assentar um interesse dos escritores nacionais pelos dramas vividos no gramado.
Há exceções, porém. O drible, romance do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues que fabula as peripécias do craque Peralvo em meio a uma tentativa de reaproximação entre pai e filho, é uma delas. Outra é a coletânea de contos Maracanazo, de Arthur Dapieve.
No campo do ensaísmo, avançam rápido pelas laterais dois livros incontornáveis para quem se interessa por esse bate-bola entre literatura e arquibancada: Veneno-remédio, de José Miguel Wisnik, é um amplo painel sobre o papel do futebol na formação da cultura brasileira. E Dando tratos à bola, do historiador Hilário Franco Júnior, que recupera a dimensão coletiva desse esporte de origem aristocrática que, num lance imprevisível como as fintas de Garrincha, foi adotado pela classe operária.
ESTANTE
O DRIBLE
Sérgio Rodrigues
Cia das Letras
VENENO-REMÉDIO – O FUTEBOL E O BRASIL
José Miguel Wisnik
Cia das Letras
MARACANAZO E OUTRAS HISTÓRIAS
Arthur Dapieve
Alfaguara
O BERRO IMPRESSO DAS MANCHETES
Nelson Rodrigues
Agir
O Povo

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