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Coluna Literatura: Leia 'Os agentes em perigo', de Carlos Navarro

por Carlos Navarro Filho
OS AGENTES EM PERIGO
Foto: Arquivo pessoal
 - É o responsável pelo jornal? 
- Sim.
- Dois agentes seus estão em Boquira, em diligências investigativas na mina. Os dois elementos chegaram à mina fazendo perguntas, dizendo-se a mando do jornal.
- Chefe eu não tenho agentes. O jornal tem repórteres.
- É aconselhável então mandar ofício a esta repartição para oficializar a viagem deles, uma vez que não podemos garantir a integridade física de ninguém que chega clandestinamente e começa a inquirir funcionários da empresa e moradores do lugar.
- Não precisamos de garantia nenhuma, nem mandar ofício, respondeu secamente o chefe de reportagem.
Jovem de vinte e poucos anos, o rapaz comandava a representação do então jornal mais importante da parte sul do continente americano na Bahia, estado mais importante do nordeste, com jurisdição sobre dois outros estados menores em território, mas igualmente importantes em problemas de todo tipo naqueles tempos sombrios de ditadura militar. Do alto do décimo terceiro andar onde ficava o seu bureau na Rua Chile, outrora a mais importante e charmosa passarela de mulheres da melhor sociedade a desfilar de chapéus e luvas nas matinés em uma Salvador que ainda não conhecia shoppings, o mundo não tinha complicações que não pudessem ser resolvidas com o jornalismo. Seu objetivo no trabalho consistia em combater a ditadura denunciando tudo o que podia com apoio do Estadão, jornal que conspirara, ajudara a implantar o regime e mudara de lado depois que teve interesses feridos. A partir daí, passou a ser censurado na boca da máquina. Os agentes em Boquira eram Bel, o fotógrafo, e Dailton, o repórter, que foram à cidade para uma matéria especial sobre a mina. A viagem era pauta pensada fazia tempo, quando o chefe da redação ainda trabalhava no Jornal da Bahia, cuja redação misturava velhos comunistas, intelectuais, escritores, artistas e um grupo de moças e rapazes alunos da faculdade de jornalismo e biblioteconomia da Universidade Federal da Bahia. Para eles o mundo não era tão complicado quanto parecia. Mudar o mundo era denunciar crimes de prisões ilegais, tortura e morte, quando conseguiam burlar a censura, denunciar os casos de corrupção, os crimes econômicos e os inúmeros casos de grilagem no oeste baiano, tomar a cachaça que o minguado salário permitia e comer todo mundo a começar pelos coleguinhas da escola de jornalismo; no caso dos rapazes, ainda havia o ganho da escola de enfermagem, parede meia com jornalismo, no fundo do Hospital das Clínicas; as meninas tinham de atravessar o vale para chegar à escola de direito, em frente a jornalismo, grande e disponível manancial de meninos bonitos. Era uma fase efervescente de liberação de costumes.  
A voz do outro lado da linha, um tanto inquisidora, continuava o que ao já impaciente repórter ganhava um caráter de intimidação. Era um preposto da mineração, instalado em uma sala da Secretaria da Agricultura da Bahia, militar da reserva remunerada do exército encarregado de manter o governo informado sobre o Núcleo de Assistência Rural de Boquira, simulacro de retribuição aos moradores em forma de entidade criada para legitimar o falsioso propósito de beneficiar com ações de saúde, saneamento e educação a população saqueada pela desapropriação.
- Olha aqui chefe, não tenho mais informações a dar. Os repórteres do jornal estão em Boquira trabalhando. Qualquer anormalidade será responsabilidade da mina e do estado.
Duas horas depois dessa conversa, pouco antes da hora do almoço, Bel e Dailton eram “aconselhados” por Linus, funcionário graduado da mina e coronel da PM, a não dormir na cidade.
- As pensões aqui são desconfortáveis e a luz apaga às dez da noite, no escuro não há como distinguir quem de quem.
Eles entenderam o recado e pegaram o caminho de volta, observados de atalaia em cada passo por olhos de mãos armadas com rifles de repetição. Levavam como saldo tudo o que viram, fotografaram e os depoimentos de moradores.
Repórter e fotógrafo experientes, apesar da pouca idade, consideraram boa a colheita da cor local que o chefe pedira para complementar o trabalho iniciado há três meses com o levantamento da produção de minério bruto em Boquira, do processamento de liga de chumbo em uma indústria de Santo Amaro da Purificação e do envio da produção para uma terceira indústria, no Paraná. Na redação, outro repórter registrava os índices não declarados de ocorrência de ouro e prata no material tirado da terra, e a sonegação fiscal. A empresa pagava apenas o imposto único sobre minerais relativo à produção de minério bruto de chumbo, produção pesada por ela mesma na saída da mina, ao largo de qualquer fiscalização. Assim, não se soube e nada rendeu ao Brasil o ouro e a prata contrabandeados. Soube-se apenas o que a empresa declarava em seus relatórios sociais publicados em Paris. Um aspecto importante da pauta era o controle opressor da população pela mina, que enfeixava todos os poderes e o direito de vida e morte no lugar. A reportagem sobre Boquira, realizada com cuidados e o sigilo possível, incluiu trabalho no levantamento de informações na França, país de origem da multinacional, que tinha um dos braços na mineração, e nas cidades de São Paulo, Curitiba, Brasília e Salvador.
Duas situações eram permanentemente levadas em conta naquele trabalho: o fato de ser francês o editor de economia do Estadão, jornalista importante a ponto de influenciar ministros da área na capital federal; e o regime que monitorava e censurava o jornal, como de resto toda a imprensa. Era uma época em que diariamente o superintendente da polícia federal, ou um preposto dele, adentrava as redações de Salvador com uma tirinha de papel nas mãos contendo os assuntos que estavam proibidos de sair nos jornais do dia seguinte. Mais tarde essas tirinhas de papel serviriam de base ao livro sobre a censura, escrito por Paolo Marconi, um dos repórteres.
Era preciso cuidado na execução das tarefas do dia-a-dia. A maior exigência do chefe era que as matérias fossem rigorosamente apuradas e checadas, o jornal não admitia retificações e ainda havia o risco de convites inesperados para explicações à polícia federal, e de prisões indevidas de repórteres e fotógrafos durante o trabalho apenas como forma de pressão.
Época das velhas máquinas de escrever, o trabalho do repórter era quase sempre presencial. Em jornal considerado de oposição, lutava-se para despejar na edição da manhã seguinte os problemas sociais de uma ocupação na periferia atacada e destruída pela polícia, deixando o povo arrebentado moral e fisicamente, ou o gorgulho que deu na recém-construída Estrada do Feijão, ou ainda a grandiosa feijoada em um colégio público na homenagem ao mandatário provincial feita com os alimentos da merenda escolar. Esta denúncia, em particular, rendeu no dia seguinte ao da publicação, um sábado, uma ligação telefônica do mandatário à redação, bufando de raiva.
- Diga àquele baixinho filho da puta que ele vai se foder...
Atendera o telefone um atônito repórter plantonista, que só soube dizer que a pessoa procurada não estava trabalhando.
Os jornais locais não tinham cacife político, nem facilidades na obtenção de dados, para publicar a denúncia da desapropriação do povoado para ser entregue à empresa. O repórter do jornal de São Paulo montou então uma pauta conjunta do Estadão, Jornal da Tarde e os baianos Diário de Notícias e Jornal da Bahia. Depois de intenso trabalho de apuração, dificultado pela impossibilidade de se obter provas, e da edição em quatro matérias de página, feita em Salvador com autorização do coordenador das sucursais, Raul Bastos, para não levantar suspeitas em São Paulo, aconteceu o pior. Publicada a primeira matéria com manchete da última página no Estadão e destaque também no Jornal da Tarde, Apy, o editor francês do Estadão, reagiu e conseguiu impedir que as demais fossem publicadas. Na Bahia, ao contrário, os jornais locais publicaram toda a série.


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