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Curta cearense "Boca de Loba" discute questão do assédio às mulheres

por Diego Benevides - Crítico de cinema
Na foto maior, equipe do filme "Boca de Loca"; e a diretora Bárbara Cabeça: trabalho é a única obra cearense no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Iniciada na última sexta-feira (14), a 51ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro reafirma o compromisso de refletir, por meio da produção audiovisual contemporânea, temáticas sensíveis à nossa sociedade. O panorama exibido até agora abre espaço para filmes urgentes que evidenciam questões de gênero, etnias, classes sociais e, claro, o futuro do Brasil pós-eleição.
Único filme cearense na competição desse ano, o curta-metragem "Boca de Loba", dirigido por Bárbara Cabeça, abriu a programação do sábado (15) para discutir o corpo feminino e suas relações com as ruas do Centro de Fortaleza. Realizado coletivamente por jovens cineastas - a maioria mulheres - a obra busca o registro, por meio da performance, das sensações femininas dentro de uma sociedade machista.
As ruas de da capital cearense ganham certa universalidade ao serem retratadas como espaços de insegurança e medo, que colocam as personagens femininas em situação de deslocamento, ainda que busquem ocupá-las. O silêncio das esquinas é quebrado com a presença dos corpos que gritam pela liberdade de serem o que são e, principalmente, convocam uma mobilização pelo respeito às lutas feministas.
A diretora Bárbara Cabeça conta que o projeto surgiu da necessidade de querer falar sobre assédio. O roteiro passou por diversas transformações, a partir da colaboração de toda a sua equipe técnica.
"Tive um tempo para amadurecer e olhar para o roteiro. Uma coisa muito importante é como a gente fala sobre essa violência sem representá-la, sem fazer mais uma vez uma cena de violência. Me inspirou muito estar junto com as meninas da Companhia Ponto, a Tatiana Valente e a Tayana Tavares, que atuaram no filme, além da Nataly Barbosa. Elas fazem performance e dança e eu as acompanhava para fazer registros desses trabalhos", lembra.
Processos
Sem cair no óbvio, "Boca de Loba" faz pouco uso do texto expositivo para explorar o potencial e o simbolismo das imagens. A performance é elemento fundamental na conquista de um discurso próprio, no qual o conteúdo político pode ser interpretado e expandido pela observação atenta das sequências. A luta das mulheres não é gritada verbalmente, mas estimulada pela conexão dessas ações performáticas que promovem esse diálogo entre corpo e cidade.
É, inclusive, a dificuldade de alguns filmes da programação desse ano. Há um encontro claro com temáticas que nos fazem pensar as transformações históricas do País, mas muitas vezes com um trato apático em questões de linguagem e narrativa. O que o Festival de Brasília vem buscando é exibir produções que outrora seriam silenciadas, mérito extraordinário da comissão de seleção, ainda que nem sempre esses filmes pensem as formas fílmicas do cinema brasileiro contemporâneo. "Boca de Loba" traz essa união entre temática e dispositivos de cena que o tornam uma experiência diferenciada.
A diretora de fotografia Irene Bandeira conta que participou de todo o processo de concepção do roteiro. "Foi muito prazeroso porque ao mesmo tempo em que a gente pensava o filme em termos de estrutura narrativa, pensamos também imagem. E esse processo coletivo foi positivo, é a coisa que mais marca para mim em 'Boca de Loba'".
"Essa coisa do corpo estava muito forte, as luzes do Centro (de Fortaleza) também. Tinha a própria tensão pra gente de estar ali gravando naquele espaço, acho que isso também está no filme", completa.
Para representar o sentimento de isolamento e perigo, as realizadoras fizeram caminhadas em grupo antes das filmagens. Além de servir como pesquisa de locação, a iniciativa despertou nelas mesmas o que a obra teria a oferecer. "Isso veio das vivências que a Bárbara propunha, esses passeios coletivos no Centro. Eu lembro dessa vontade de não demonizar o Centro, de saber que é ali que a gente está sofrendo esse assédio, que a violência acontece, mas ali também é nosso. O retorno para essas ruas para o filme, para a história e para nossa vida é quase um encontro de conciliação, de que eu também mando aqui e vou disputar esse espaço com o meu corpo e o meu jeito", conta a produtora Polly Di.
A harmonia entre conteúdo e forma em "Boca de Loba" revela essa preocupação de pensar alternativas para contar a história que as realizadoras querem defender. Além disso, representa muito bem os processos criativos de um cinema cearense jovem pulsante, sempre inquieto e em busca de experimentações narrativas.
A equipe de Bárbara Cabeça propõe um pensamento sobre assédio nas ruas que está na forma como as mulheres se movimentam em cena e interagem umas com as outras. Juntas, elas são mais fortes em qualquer lugar.
Não existem personagens masculinos servindo de vilões porque apenas isso não daria conta do testemunho que o curta-metragem quer fazer. O que temos é uma produção perspicaz que se utiliza de recursos do cinema para fazer poesia e política em cena.
Colaborativo
O filme também é o símbolo da união de uma equipe que resiste e discute seus próprios mecanismos de fazer cinema no Estado. "Lembrar de como foi o 'Boca de Loba' me acolhe porque é imprescindível que se tenha muita mulher (fazendo cinema), porque também é um espaço de segurança", conta Polly.
"Ter essas experiências e entender que estar perto dessas mulheres é também uma forma de se fortalecer. Eu acho que foi uma das primeiras coisas que a gente conseguiu", completa Bárbara.
"Boca de Loba" é o primeiro curta-metragem de Bárbara após formação no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), fruto do edital de Cinema e Vídeo de 2015 da Secult-CE. O reconhecimento de estar em uma vitrine importante como o Festival de Brasília (o curta também participou da Mostra Olhar do Ceará, do Festival Cine Ceará, em agosto) não esconde as dificuldades de realização.
As burocracias dos editais são quase sempre desanimadoras, de acordo com a produtora executiva Renata Cavalcante. "É meu modelo de produção, gosto que todo mundo esteja junto para entender como funciona. Como entendemos esse formato de edital, como fomentamos, como trabalhamos com isso? É um modelo velho e arcaico", conta.
Polly reconhece o privilégio de fazer um filme com dinheiro, mas ressalta que existem modelos de editais mais inspiradores em outros lugares do País. "Como uma política pública é pensada para que você desista antes de começar? É uma falta de entendimento logístico, e o edital precisa de melhorias mesmo, não só por parte de comissão de seleção, mas pensar em um edital mais amplo no sentido que não te faça desistir antes de começar e que tenha mais clareza".
O crítico viajou a convite do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Diário do Nordeste

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