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Memórias da Resistência na Ditadura

por Paulo Pontes
Memórias da Resistência na Ditadura
Foto: Arquivo pessoal
CHEGADA                                           
De camisa de malha, mangas longas, coincidindo com as cores do Bahia, cheguei a Salvador no sábado de carnaval de 1970, na antiga rodoviária perto das Sete Portas. Às 16h, em frente ao Elevador Lacerda, deveria me dirigir a um cidadão de chapéu de palha e dizer uma senha, que obteria uma contrassenha. Fui andando, carreguei minha bagagem durante todo o percurso até a Ladeira da Praça. Apenas as roupas e nenhum livro. Iria encontrar um desconhecido, de chapéu de palha. Me preparei para ficar perdido. Durante todo o percurso a pé, fui saudado por muitos indivíduos de chapéu de palha: “e ai baêeea?”,  que só depois vim compreender ser uma saudação pelas cores da minha camisa. Tomei a primeira cerveja na Bahia, para fazer hora, em um boteco nas proximidades do Corpo de Bombeiros e subi a Ladeira da Praça para o encontro.


Muitos mascarados com a vestimenta típica da época (mortalha) continuavam me recepcionando. Em frente ao elevador mais de dez homens de chapéu de palha não chegaram a dificultar a identificação de quem eu procurava, porque, com ele, estava um conhecido, Frederico Menezes, do Recife. Renato Ribeiro, engenheiro pernambucano que já morava aqui há alguns anos era o meu contato. Também estava com ele o poeta Dirceu Regis, que me indicou uma pensão na avenida sete, perto do Palácio da Aclamação, onde fui me hospedar naquele mesmo dia.


O carnaval era diferente dos de Recife e Olinda e também do que veio a ser o de Salvador depois. Ainda se colocavam cadeiras nas calçadas para ver os blocos: nunca mais de cem rapazes de mortalhas iguais. Pouquíssimas mulheres na rua e, embora digam que é impossível, não lembro de ter visto trio elétrico. Poucos blocos que chamavam a atenção por serem de índios, com nomes de americanos, Apache e Comanche, e sem mulheres.  Fiquei de bobeira andando pelo centro durante o resto do carnaval. Minha história pouco verosímil, contada na pensão, no máximo despertou suspeita sobre outra coisa. Militância clandestina e do tipo que viríamos a fazer depois, era completamente impensável na Bahia daquele início do ano de 1970. Não sei se pensaram que eu era bandido, mas certamente estava mentindo, ao dizer que um primo iria me arranjar um emprego na Petrobras.


Cerca de vinte dias depois meu dinheiro estava esgotado. Paguei a pensão e Renato Afonso me levou para ficar com seu irmão Marcos e outros dois que haviam passado no vestibular e tinham alugado uma casa de nativos em Itapuã. Eu já era mais velho, mas não chamaria atenção. Passei como mais um estudante. Anos depois de solto, voltei a me encontrar com todos três já formados em situações diferentes. Marcos, engenheiro, fez carreira numa empresa privada de petróleo, tornou-se militante e, posteriormente, foi assassinado num assalto, no estado do Rio de Janeiro. José Carvalho e João são médicos. Encontrei o primeiro como professor da Ufba, quando fui diretor na Secretaria de Ciência e Tecnologia e ele matinha posição contrária à do governo sobre como minorar a contaminação por chumbo no município de Santo Amaro. Não o reconheci, ele foi quem me identificou. Terminamos nos casando com duas psicólogas amigas.


Depois da minha experiência na pensão da Avenida Sete e do estágio com os vestibulandos, fui morar no fim de linha do Pau Miúdo, em uma casa alugada por Dirceu. Inicialmente, ficaram lá comigo, Frederico Meneses, Dirceu Regis e Getúlio Cabral[1] eventualmente, outro clandestino que estivesse de passagem, como Alberto Vinicius de Recife e a caminho do Paraná. Depois desse aparelho montei minha morada no fim de linha da Cidade Nova com moveis usados, por serem mais baratas e possibilitarem uma visualização de normalidade junto aos novos vizinhos. Lá cheguei como casado porque Lourinha já tinha chegado do Recife. Apesar de ter pago a fiança com dinheiro, adiantando três meses de aluguel, fizemos contrato formal em nome de Dirceu, como se fosse irmão de Lourdinha. Assinei José Fernandes da Silva, como suposto fiador. O proprietário não morava nas imediações, tranquilizando quanto a pequenas incoerências.


CONTATOS
Comecei a conhecer todos os contatos originários da Bahia e fui ampliando. Além de Renato Afonso, atualmente professor de história, Roberto Albergaria, professor de antropologia da UFBA, recém falecido; Carlos Henrique (Painho) e Gloria, que chegou a ser líder sindical de profissionais da área de turismo; Wagner estudante de economia, que se exilou na Suécia e, posteriormente, resolveu fixar residência naquele país; Natur de Assis, secundarista, que voltou para sua Ubaíra, onde foi assassinado na disputa política municipal; Maria da Glória Midlej (Góia),  com quem estive em várias ocasiões pós prisão, inclusive, chegamos a trabalhar juntos, quando fui chefe de gabinete da SEC e ela uma das diretoras.


Viajei para Jequié e, formalmente, instalamos uma base com os jovens Ricardo Nobrega, Wesley Macedo, com os quais estive preso a partir de 1971, e Acácio Araújo, que acabava de ser selecionado para entrar no curso de técnico agrícola. Outro jovem daquela base era Bitencourt. Acácio e Bitencourt se exilaram no Chile. Na volta, ambos se tornaram sindicalistas. Acácio foi quem me orientou na conquista do primeiro emprego pós prisão, na CEPA, através de Ana Bianchi. Depois fomos colegas na CAR. Ele faleceu de leucemia no início do primeiro governo Lula.


Naquela época voltei a Jequié numa madrugada, para retirar um mimeografo e uma máquina de datilografia que a nossa base expropriou de uma escola, sendo presos Ricardo e Wesley, como suspeitos. Fomos eu e Renato Ribeiro com o contato de uma aliada, prima de Wesley, para localizar o esconderijo e trazer os objetos a Salvador. Assim, mesmo que os presos falassem, não haveria prova material. Não falaram. Chegaram a cumprir quase 3 anos de prisão. Ricardo, atualmente, mora em João Pessoa, e Wesley, até onde sei, continua morando em Jequié e com problemas emocionais decorrentes do trauma da prisão.


Abrindo novas frentes de trabalho, fui conhecendo potenciais militantes e pessoas vinculadas a outras organizações. Mantive contatos clandestinos com dirigentes do trabalho político aqui em Salvador: Orlando Miranda da POLOP, recém falecido de causas naturais; Lucia Murat, do MR-8, atualmente cineasta do Rio de Janeiro; Tibério Canuto, da AP, que atualmente mora em São Paulo; José Campos Barreto (Zequinha), que, posteriormente, foi morto em companhia do capitão Lamarca, ainda na VAR PALMARES, e Claudio Perani, de uma organização sem nome, vinculada aos católicos.


Penso que vale a pena registrar algumas pessoas que caíram no esquecimento, até por não terem sido presas ou o serem por curto período. Uma delas era um prestador de serviços autônomo, faz tudo, cujo nome de guerra era Rildo e a polícia não pôde identificar. Com isso ele escapou, mas caiu no esquecimento. Outro é o sapateiro que trabalhava, exatamente, na Baixa do Sapateiro, cujo nome não me recordo, mas foi preso e, apesar de torturadíssimo, manteve a versão pré acertada comigo e não chegou a ser processado.


Outra figura interessante foi Lúcio, nome que atribuímos a um contato repassado pelo companheiro José Wellington de Freitas, atualmente morando em Oliveira dos Brejinhos. À época, Lúcio era oficial de justiça e nos viabilizou matrizes de registros de nascimento, identificação de trabalhadores em cartório e outros, com o que forjávamos documentos para os clandestinos. Por estar com um texto do PCBR, viabilizou meu contato com Zequinha, seu conhecido da região, onde nasceram. Depois foi testemunha de defesa de Olderico Campos Barreto, cujo depoimento na justiça militar da Bahia foi bastante corajoso. Pode parecer surpresa para os que o conhecem atualmente, mas estou falando do juiz desembargador Clésio Garrido Rosas, atualmente aposentado. Suas ações à época foram discretas, mas eficientes.


Dos três, só voltei a encontrar este último, por isso sei o nome e a sequência de sua vida. Os dois outros, certamente, não os reconheceria nem se nos encontrássemos pessoalmente. De certa forma, isso aconteceu com algumas pessoas. O melhor exemplo foi Orlando Miranda, já falecido. Reencontramo-nos na militância para a construção do PT. Juntos, no mesmo organismo por mais de cinco anos e eu não o associava ao antigo militante da POLOP que guardava na memória. Certo dia deu o estalo e perguntei. Ele riu muito e disse que sempre achou que eu me lembrava e, por alguma razão, guardava o segredo, àquela altura desnecessária. Outro de quem só me lembrei muito depois, foi Claudio Perani. Com este não pude confirmar a lembrança, que só me voltou quando ele já tinha partido da Bahia.


Acho que, inicialmente, eu era o único militante profissionalizado para ter como dedicação exclusiva a construção do PCBR aqui na Bahia, pois Dirceu era vendedor só sendo profissionalizado depois. Além de mim, a direção era composta, pelo engenheiro Renato Ribeiro, pernambucano que tinha emprego regular em uma prestadora de serviço da Petrobrás, por Dirceu Regis, que trabalhava por toda cidade para uma revendedora de bebidas, e por Frederico Menezes, também profissionalizado, com a militância temporária, enquanto não fosse definido seu destino.


Portanto, três pernambucanos num grupo de quatro, o que fez a repressão, posteriormente, fazer ilações sobre uma suposta determinação específica para desqualificar os baianos.


Minha atividade era puramente política. Era um recrutador de militantes para o Partido, no combate à ditadura, embora Dirceu Regis tenha me superado em ousadia. Depois da nossa queda houve mais duas ou três prisões de grupos de pessoas que se aproximaram do PCBR, em graus variados, devido aos recrutamentos de Dirceu. Muito tempo depois fiquei sabendo que até Milton Santos Filho e Paulo Henrique de Almeida, à época meninos com 14 ou 15 anos, foram praticamente recrutados pelo ímpeto do poeta.
A partir dos contatos do poeta e outros, era feita uma avaliação e, a depender do caso, eu passava a acompanhar mais de perto a militância. O sentimento de repúdio à ditadura era generalizado entre os jovens da época. Mas também existia muito medo. Inicialmente, não tínhamos uma estrutura definida. Fazíamos reuniões individuais ou de grupo, depois organizávamos em base do partido. Uma das primeiras reuniões formais que fiz como PCBR aqui em Salvador foi com o grupo formado por Renato Afonso, Roberto Albergaria e o casal Carlos Henrique Leal Nascimento e sua mulher Gloria, no apartamento onde moravam na Ladeira da Barra.


Com o secundarista Natur de Assis Filho houve uma proximidade imediata. Tínhamos em comum a defasagem na escolaridade e foi ele quem primeiro identificou meu sotaque pernambucano. Fazíamos reuniões andando relembrando as passagens dos documentos entregues anteriormente. A conversa caia sempre para a objetividade. Entusiasta da luta armada, ele sempre tinha interesse nos informes verbais sobre essas ações.


Na época me passou um contato com sua ex-namorada Lucia, com quem cheguei a fazer uma reunião na praia, em roupa de banho. Cobríamos o documento de discussão com areia e íamos descobrindo apenas o parágrafo de interesse, fechando-o em seguida à leitura. Em caso de surpresa tentaríamos cobrir tudo e pareceria apenas, um casal na praia.Com outra Gloria (Mendlej) fiz uma primeira reunião na praça de Nazaré, ainda sem uma definição de onde coloca-la na estrutura. Dificuldade, aliás, que tínhamos com muitos.


Na faculdade de Economia da UFBa, tínhamos dois contatos. Um era com Ana Cecilia (Adriana) com um problema a ser solucionado, por ser casada com Renato Ribeiro, da direção. Algumas das reuniões eram na casa deles. Ficava difícil ela participar de uma estrutura política, apenas, pelo aspecto do seu casamento. Por outro lado, corríamos o risco de ela participar de uma instância de base sabendo onde a direção se reunia.


O outro contato da Faculdade de economia era Wagner Coqueiro, que morava com um irmão gêmeo (Wandick) e a cunhada (Dinaelsa), que eram de outra organização de combate à ditadura com suas regras e estruturas próprias, o que terminou contaminando a ambas. Por exemplo, quando de minha prisão em Salvador, Wagner não deveria mais manter sua vida legal. Seu irmão e a cunhada também tiveram que ir para a clandestinidade e, posteriormente, foram mortos na Guerrilha do Araguaia.


No meu trabalho permanente na Bahia fiquei responsável pelos contatos com Rildo, originário do proselitismo do poeta. Era importante, porque circulava em todos os lugares de Salvador sem levantar suspeita, mas nunca soubemos como aproveitá-lo. Outro contato da época foi com o sapateiro. Ele ouvia a rádio de Pequim em português, sem maiores preocupações com as pessoas em sua volta. Foi quando Alberto Vinicius, de passagem de um mês por Salvador, disse a ele que sabia do que se tratava, conversaram e me passou o contato. Há ainda “Pita”[2], um ferroviário que trabalhava numa das estações de subúrbio e com quem fui me reunir, levado por José Welington para conversas iniciais.


Tratava-se de um movimento muito dinâmico. Embora existissem alguns que eram apenas curiosos com a vida dos clandestinos, a maioria desses contatos vingavam e se tornavam bons militantes.


Com essa intenção, e também com a ideia inicial de termos estrutura de apoio médico para o caso de ferimentos em algum de nós, nos confrontos que esperávamos, fui conhecer mais dois outros personagens que desapareceram depois. Um médico recém-formado, com quem me encontrei nas imediações do Teatro Castro Alves, levado por Vilma Marilia Freitas. Foi apenas uma conversa inicial, onde ele me disse o que seria fundamental num desses prontos socorros precários, que não chamasse a atenção da repressão. Um outro, ainda estudante de medicina, repassado pelo poeta. Não sabia nada e morria de medo de tudo. Nesses casos nós apenas cumprimentávamos e, com um “até logo”, desaparecíamos.


Esse rapaz, porém, reapareceu para novo encontro comigo, mas não dizia nada com nada. Tentou fazer um trocadilho com a palavra operação, como cirurgia e como ação armada, e desapareceu. Não cheguei a rebatiza-lo. No meu pensamento ficou como Noel porque ele tinha aquela mesma deformação da face do grande compositor brasileiro do início do século XX. Esse indivíduo chegou a ser citado por um dos policiais como a primeira fonte de informação sobre mim que chegou à repressão. Seria apenas um curioso e queria ampliar seu horizonte de primeiro ano de medicina, conhecendo alguém daquela vida paralela. No primeiro contato comigo, espantou-se e correu para a polícia federal, falando do encontro, dizendo que não quis saber e abandonou o contato. Aí a direção da PF teria mandado que ele procurasse novo contato para que eles acompanhassem. Pode ter sido a partir daí que a polícia teria me seguido.


Com Clésio foi bem diferente. Incialmente, era um contato esporádico trazido por Jose Wellington, e minha conversa operacional com ele foi basicamente buscar saber o que do trabalho corriqueiro dele poderia nos servir. Era oficial de justiça, portanto, tinha acesso a modelos de documento que nos interessavam. Por exemplo, o registro de nascimento que serviu para Lourdinha retirar documentos com o nome de Luciana Ribeiro da Silva, foi feito por mim em um dos formulários que ele forneceu. Mas ocorre um acaso que vai provocar meu contato com Zequinha, que devia estar na Bahia com o mesmo tipo de missão que eu. Ao procura-lo, pois eram da mesma região, apresentou-lhe um documento do PCBR que eu lhe tinha dado. Zequinha pediu para ela marcar um contato comigo e nos encontramos. Através dele marquei um contato com o MR-8 e fomos fazer uma reunião na praia do jardim dos namorados.


O relato de um policial é verdadeiro: “...a moça continuou de saia e blusa. Você e o outro rapaz, tiraram a roupa e ficaram de short”. Certamente esta é a referência mais antiga quanto a estarem me seguindo. Não me lembro se isso foi antes ou depois do meu último encontro com Noel. Mas há uma lógica, pois, a repressão passou a me seguir e me viu ter encontros com outras pessoas, no caso, Zequinha e Lúcia Murat. Em outro momento me fotografaram com os mais procurados dos nossos militantes vindos do Rio. Sem saber, registraram Prestes de Paula, Bruno Maranhão e Getúlio Cabral no bairro da Calçada, e não os seguiram, preferindo voltar à minha casa na Cidade Nova, para me seguirem nos dias seguintes. Achavam que, na porrada, eu daria o endereço dos outros.


OUTRAS ORGANIZAÇÕES
Com o MR-8, adotamos uma postura de colaboração entre companheiros, com ajudas mútuas a partir da necessidade de um e da disponibilidade do outro, considerando uso de aparelho, algum dinheiro ou armamento. Nos nossos encontros, Zequinha logo deixou de comparecer. Acredito que, nesse período, deve ter mudado da VAR para o MR 8. Com Lucia Murat apareceram as divergências mais comuns. Ela dizia que orientavam seus companheiros, em caso de prisão, a preservar a organização nas primeiras 48 horas e se preservar a partir daí. Eu dizia que nenhuma organização tinha estrutura tão eficiente. Logo, a orientação do PCBR era não falar nem o próprio nome para a repressão. A realidade mostrou, tragicamente, como ambos estávamos errados. Outra questão que nos dividia era a destinação do território baiano. Ela tinha a visão de que deveria ser uma espécie de área de recuo para as organizações com problemas graves de segurança em outros estados. Nós, e eu dizia isso com muita ênfase, insistíamos em que “a Bahia é Brasil, portanto, em qualquer espaço devemos estar combatendo a ditadura”. Outro exagero de ambas as partes. A esquerda não tinha capacidade de se posicionar em conjunto sobre quase nada, portanto, não teríamos como entender o território baiano como de suposta neutralidade. De nossa parte, pecávamos verbalmente, porque, na verdade, não houve esse combate generalizado.


Em depoimentos de companheiros da época, ouvi restrições ao fato de termos feito ações armadas aqui, como uma espécie de atração involuntária da repressão. Minha sensação é que agimos coagidos pela emergência. Usamos o espaço baiano para o proselitismo e o recrutamento. Mas também, por fragilidade nacional do PCBR, fomos forçados a fazer ações armadas, como relato adiante.


Estávamos preparando um sequestro na Bahia e nos desvencilhando dos contatos com as demais organizações. Foi quandoo MR 8, através de Lucia Murat, nos informou que o nosso aparelho na Cidade Nova estava sob observação. Com isso conseguimos nos dispersar de todas as organizações, ficando apenas alguns pontos pendentes, sobre os quais a repressão nem saberia como perguntar.


Com a AP nossas discussões terminavam sendo uma decorrência do movimento estudantil. E especificamente secundarista, pois aqui eu era o PCBR e Tibério a AP. Eles tinham uma formulação que, a meu ver, não tinha sentido. Chegaram a escrever um documento em que diziam que o núcleo central do Partido do Proletariado no Brasil deveria sair da aglutinação de três forças: a própria AP, o PCBR e o PCdoB. Nunca ouvi falar disso em outro fórum. E, se alguém do PCBR deu alguma importância, não chegou a divulgar como algo significativo. A história posterior mostrou que o interesse do PCdoB sobre AP não diferia do que teve sobre nós, com o racha que nos tirou o Comitê da Guanabara, ou seja, servir como base para recrutamento de militantes.


AUTOFAGIA DA ESQUERDA
Todos nós nos lambuzamos nestes banquetes, de alguma forma. No caso da esquerda brasileira, nunca foi visto como primitivismo recrutar grupos políticos já organizados. Essa visão decorre da vantagem de se recrutarem pessoas com prévio conhecimento sobre o processo de luta e experiência de convivência organizada. Mas a maior motivação era mesmo decorrente de se incorporar um número mais significativo de pessoas do que o lento e penoso trabalho de discutir e convencer cada indivíduo, aqueles que conhecemos no movimento social e de quem vamos descobrindo, lentamente, afinidades e a possibilidade de estreitamento das relações políticas e pessoais.
Com a inviabilidade de grandes movimentos sociais após o Ato 5, esgotou-se temporariamente a fonte de reposição de quadros e o crescimento das organizações pelo recrutamento de novos militantes. Com isso cresceu a necessidade de recrutar bases inteiras, a partir de grupos mantidos dentro das outras organizações ou de discussões atropeladas, em que parte dos recrutados não acompanhavam o processo em detalhes.


O PCdoB foi quem mais praticou a autofagia, através da permanência, por tempo relativamente longo, de grupos já recrutados sem se identificarem, mantidos na organização de origem. Um exemplo significativo foi a fração do PCBR do Comitê Estadual da Guanabara com seu documento intitulado “Reencontro Histórico”, que já teria sido recrutada desde a época do Partidão. Pela dimensão, o mais importante foi a manutenção de inúmeros quadros dentro da estrutura da Ação Popular, de onde foram retirados pequenos grupos ao longo dos anos.


Do PCBR, só conheço o caso do recrutamento da base trotskista do Ceará, de onde vieram Mário Albuquerque e Vera Rocha, e as nossas investidas nos grupos pré-organizados de estudantes que necessitavam de estrutura maior. Aqui na Bahia tivemos sucesso com o grupo encabeçado por Renato Afonso e Roberto Albergaria, em Salvador, e por Acácio Araújo e Ricardo Nóbrega, em Jequié. Com esses grupos vinham também seus simpatizantes e futuros militantes, o que possibilitou ter havido mais duas quedas na Bahia, após a minha prisão. Embora erroneamente eu fosse o maior centralizador de informações, não conhecia a maioria dos militantes presos. Fiquei sabendo sobre a existência deles, a partir dos anos oitenta, quando já estava solto. 


O resultado nem sempre foi o desejado e, às vezes, se obtinha, exatamente, o oposto. Um exemplo contrário seria a Corrente Revolucionária do PCB, formada durante o processo de organização do 6º Congresso, em 1967. Surgiu como um grupo unificado para ganhar o Congresso e a estrutura do Partidão, mas terminou se fracionando em ALN, MR 8 e PCBR, como organizações independentes. Depois saiu um grupo do PCBR para o PCdoB. E o MR 8 reapareceu como dois grupos, no Rio de Janeiro e na Bahia, embora por motivações distintas. Com isso as organizações ficavam sempre menores e mais frágeis e, no processo de tentar reunificar, separavam-se de novo.


PERIGOSAS ATRIBUIÇÕES 
Sempre tivemos uma certa admiração ou “dependência” analítica ante os companheiros da POLOP. Utilizamos os seus questionamentos sobre a conjuntura e, especialmente, sobre a luta armada, como a praticávamos. Mas existia um descompasso entre o que assimilávamos teoricamente e o que éramos obrigados a realizar na pressa do dia a dia. E eles tinham a dificuldade de transformar em ação os próprios ensinamentos. Nunca foram expressivos no movimento social.


A cooptação era a forma de recrutamento mais rápida e eficaz naquelas circunstâncias. O PCBR tinha como critério, por exemplo, encarregar os militantes tidos como de melhor nível político, para atuação nas ações armadas. Dizia-se claramente que era para evitar o militarismo e deixar as ações nos limites de atos políticos. A direção Nacional do PCBR estava na Bahia usufruindo dos benefícios de uma área de recuo. Só depois vim saber dos detalhes, mas, o certo é que foi decidida a realização de um assalto aqui, para angariar recursos sempre necessários ao partido. A ação seria feita, principalmente, pelos nossos quadros mais queimados e experientes do Rio de Janeiro, que também aguardavam na Bahia a orientação para onde deveriam se deslocar no Nordeste. Foram escalados para o grupo de contenção, Bruno Maranhão, como motorista, José Adeildo Ramos e Getúlio Cabral, na rua. Para o grupo de enfrentamento direto dentro do Banco foram Valdir Saboia, Fernando Augusto da Fonseca, Theodomiro Santos, Antônio Prestes de Paula e eu, tendo como motorista fora do banco, Alberto Vinicius, vindo do Recife e se deslocando para o Paraná.


Minha participação foi endossada pelo nosso Comitê Regional. Sem questionarmos o fato de ser eu, exatamente, quem acumulava mais informações e contatos. Eu também não fiz nenhum questionamento. Fizemos apenas uma reunião na praia da Ribeira para acertar detalhes. Acertamos que o melhor seria deixar o grupo de contenção no curto caminho entre a delegacia e o banco, já que a outra alternativa seria fazer duas ações: a contenção invadiria a delegacia e nós o banco.


Por que aceitei participar de uma ação armada, se nunca tinha feito um treinamento de tiro? Não tem nada a ver com a racionalidade comum. Eu também não queria mostrar meu medo naquela ocasião. Era comum as pessoas darem para trás em situações mais perigosas. Aceitar a luta armada em geral, mas não querer praticá-la. Aceitar ser mantido com dinheiro da expropriação a bancos, mas recuar na hora de fazer o assalto. Aceitar os riscos da luta só para os outros, como Picão. Eu não seria um deles.


Os primeiros e últimos tiros que dei na minha vida foram naquela tarde de maio de 1970, na frente do Banco da Bahia, agencia Liberdade, na avenida Lima e Silva, Liberdade, Salvador, Bahia. Determinado, mas totalmente atordoado com um tipo de situação para a qual não tinha o mínimo preparo e controle.


MARATONA
Além de manter contato a nível de direção regional com as outras organizações, passei a atuar em mais duas frentes. Internamente, tinha o contato da quase totalidade dos novos companheiros que estavam chegando ao partido. Com esses, além da doutrinação, definíamos tarefas, tais como pichações, panfletagens, comício relâmpago. Todas essas ações públicas eram feitas empunhando armas. Geralmente eu participava com os companheiros iniciantes. Entretanto, não tenho lembrança de um comício relâmpago armado na Barroquinha, que é relatado como uma ação do PCBR. Certamente, nesse eu não estava. Alguns, como eu, poderiam ser mobilizados extraordinariamente, mas sua frente de atividade permanente era a ação política, que eu achava mais importante.


Na Bahia me envolvi no assalto ao banco e na preparação de um sequestro que não ocorreu. Soube depois que a Direção Nacional, inicialmente, havia determinado duas tarefas. Para Recife, o sequestro que não se realizou, devido à prisão de Chico de Assis, Vera Rocha e Nancy Mangabeira Unger, e para a Bahia, assalto ao Banco da Liberdade, que também não teve o êxito esperado, pois a maior parte do dinheiro ficou na calçada.


Fiquei sobrecarregado. Estava quase sufocado de tanta responsabilidade. Certamente, sacrifiquei algum dos níveis de segurança, o que possibilitou à polícia me seguir em várias ocasiões. Posso afirmar que a minha queda não foi mais desastrosa, pela ineficiência da repressão baiana. Por que me escolheram e não seguiram, além de mim, Zequinha e Lucia Murat, a partir do nosso encontro na praia do Jardim dos Namorado? Por que não seguiram Bruno Maranhão, Getúlio Cabral ou Prestes de Paula, a partir do nosso encontro na Calçada? Isso, para falar apenas de pessoas entre as mais procuradas do país, naquela época, e que o DOI-CODI daqui, sem atinar quem eram, se limitou a fotografar de longe. Foram ineficientes, também, nas vezes em que me perderam de vista, sem que eu tivesse, porque não sabia, intenção de despistar.


Minha incapacidade de decorar tantos pontos me fez tentar anotar alguns, para não esquecer. Getúlio me fez refletir sobre isso. Quando fui anotar um encontro com ele, disse: “Se anotar, eu não vou. Se você cair, mesmo que não queira, essa anotação me entrega”. Decorei ao máximo e, quando cai sem anotações, fiquei apenas na dependência de perguntas mais genéricas. Há fatos e pessoas que esqueci permanentemente, até muitos anos depois. Bendito bloqueio!


ASSALTO AO BANCO
Em reunião do grupo dirigente formado por mim, Dirceu Regis, Frederico Meneses e Renato Ribeiro, juntamente com Bruno Maranhão, da direção nacional, ficou acertado que eu seria o representante regional da direção nas ações armadas. Além das atividades e contatos políticos e organizativos, seria o responsável por organizar e preparar as ações armadas, no futuro.


Naqueles tempos e na nossa militância, não esperávamos o futuro chegar. Íamos determinados ao seu encontro. Na mesma reunião foi informado que estava sendo preparada uma ação de expropriação de fundos em um banco. Todos os participantes, militantes do Rio que estavam aqui como recuo, já tinham levantado o alvo e feito o reconhecimento, juntamente com Alberto Vinicius, que estava sendo deslocado para o Paraná e seria o motorista da ação. Além de mim, haveria a participação de outro militante da Bahia, Theodomiro Romeiro. Recebi o ponto com eles para a reunião de preparação.


Fui para a reunião na praia da Ribeira e lá ficou definida a estrutura da esquadra, que era a denominação utilizada pelo PCBR para os grupos de fogo ou de combate de ações armadas. O comandante seria Beto (Antônio Prestes de Paula) secundado por Gil (Fernando Augusto da Fonseca). Outro com função definida seria Rildo (Alberto Vinicius do Nascimento) como motorista. Os demais atuariam como combatentes: eu, Arnaldo (Valdir Sabóia) e Marcos (Theodomiro). Eu ainda não conhecia o local e fui orientado a visitar o Banco da Bahia, no bairro da Liberdade. No dia seguinte cortei o cabelo numa barbearia em frente ao banco para poder ficar mais tempo observando sem chamar atenção.


Foi informando, e todos nós concordamos que, mesmo havendo uma delegacia a cerca de cem metros, a ação poderia ser feita.  Enquanto estivéssemos no banco, outro grupo invadiria a delegacia e prenderia os policiais presentes, ou deixaríamos esse outro grupo na rua, entre a delegacia e o banco? Optamos pela segunda alternativa, considerando que poderiam aparecer policiais na própria rua. Se viessem os da delegacia, nosso grupo os surpreenderia e os manteria afastados do banco. Nesse outro grupo participariam Tião (Bruno Maranhão) como motorista, Patriota (Adeildo Ramos) e Artur (Getúlio de Oliveira Cabral).


MISSÃO
O objetivo do grupo que eu participava era trazer o máximo de dinheiro e evitar ferir qualquer pessoa. Gil ficava encarregado de levar o contador, já identificado, para abrir o cofre; eu levaria e manteria os clientes e funcionários no subsolo, onde estavam os banheiros; Arnaldo e Marcos renderiam os caixas do primeiro andar e desceriam com o dinheiro para se juntarem a nós no térreo.


Enquanto isso, Beto ficaria na porta do banco e Rildo no carro ligado em cima da calçada. E fora de nossa visão, o grupo de contenção, para segurar qualquer reação vinda da rua ou da delegacia. Na prática os acontecimentos foram diferentes do planejado.


A delegacia foi informada e, sob o comando de um escrivão, vieram uns quatro ou cinco PMs até a porta do banco. Nosso grupo de contenção não os deteve, porque, ao sacarem as armas na rua e apontarem para a viatura policial, foram surpreendidos, antes por transeuntes. Os policiais focados no banco sequer notaram a confusão na rua. Pararam na frente da agencia e desceram.


Dentro do banco, por puro nervosismo, eu esqueci de baixar do boné um capuz de filó que deveria usar para dificultar reconhecimento. Fiz tudo de cara limpa. Cumpri bem minha missão, pois clientes e funcionários não acreditaram quando Gil anunciou o assalto. Da gerencia, olharam para trás e voltaram a conversar. Menos por convicção do que por medo, gritei


“- Depressa, todo mundo para o banheiro! ”


Os meus gritos angustiantes, ou os dois revolveres que usava, sem nunca ter dado um tiro, fez efeito. Todos se deslocaram em direção ao subsolo, menos o “tesoureiro” a quem Gil, educadamente, disse:


“- O senhor fica para abrir o cofre”.


Abriram o cofre e o “tesoureiro” pôde descer para o subsolo com os demais. Nos dois banheiros, entupidos de gente, ninguém abria a porta e ele me olhou angustiado: “ Meu irmão, não me deixe nessa situação...”  Mandei-o afastar-se e, com a coronha da arma, bati na porta, que foi aberta, e ele se juntou aos demais. Voltei para o topo da escada que dava acesso ao andar térreo.


TIROTEIO
Lá do fundo ouvi tiros na frente. Havia uma só porta de entrada e saída. Fui para lá, conforme o previsto, e Beto já deixara o placar a nosso favor. Militar por vocação e profissão, preparado para o combate, deu um tiro de rifle e outros sequenciais, de pistola. Feriu um escrivão aposentado e um PM que, surpresos, recuaram com seus outros colegas. Ali fiquei como guardião da porta, enquanto os demais, Marcos e Arnaldo, principalmente, foram chegando. Os estilhaços da fachada de vidro choviam sobre nossas cabeças. Pelo nosso planejamento eu deveria ser o primeiro a sair, mas sem precipitação. Só ao comando de Beto. Aguardei com ansiedade, enquanto atirava na direção de onde pensava virem os tiros da polícia.  Na calçada do banco, usada como estacionamento, observei um homem de minha idade, a menos de dois metros, dentro de um fusca. Manteve as mãos sobre o volante, como quem me avisava que não estava armado. Olhávamo-nos angustiados. Difícil manter o equilíbrio. Eu não deveria atirar em quem não nos ameaçasse. Mas a tensão era grande e eu perguntava se já poderia sair. Até que, finalmente, Beto deu a ordem.


“-Vamos sair. Vai, André! ”


Nesse momento, o carinha do fusca resolveu sair do carro. Sempre com as mãos à mostra, plantou-se à minha frente com os braços abertos. Sem ameaça. Parecia mais desespero. E era. Entendi como uma súplica e mandei que corresse. Ele ficou como que petrificado por angustiantes segundos. Foi quando mais uma vez meu medo me fez gritar, parecendo ser forte e determinado: “Corre, corre, filho da puta! ”. A frase, seguida de dois tiros perto dos seus pés, foram suficientes para o fazer correr.


Finalmente fui para o carro e vivi outros momentos de angustiante espera. Cumpri à risca o planejado, sentando no banco da frente do aero-willys, ao lado de “Rildo”, o nosso motorista, que aguardou, controladamente, a chegada de todos. Deixei espaço para “Beto” também sentar no banco dianteiro. Não aguentei a angustia de esperar por Gil, que após arrastar o enorme saco de dinheiro, não tinha mais força para alçá-lo para dentro do carro. Por entre as cabeças de Arnaldo e Marcos, atirei através do para-brisa traseiro, agravando a tensão entre os demais. Novamente, a voz firme de “Beto”: “Larga tudo e vamos embora”.


RESULTADOS
Já com o carro em movimento, Gil lamentava a quantidade de dinheiro deixado sobre a calçada e ouvimos de Beto: “ Dinheiro a gente pega em outra ação. Não vamos arriscar a vida de nenhum companheiro”. Em velocidade viemos pela Lapinha, Largo de Quitas, e subimos para uma rua meio deserta, rumo a Nazaré, onde desembarquei. Constatamos que, na confusão, ainda trouxemos para o carro um saco com 21 mil recolhidos no andar superior. Pelo volume deixamos bem mais do que 100 mil na calçada do banco.


Fui até a praça de Nazaré informar ao Poeta e que ele avisasse a Lourdinha que poderiam voltar para onde morávamos. Peguei um taxi para o bairro de Cidade Nova, onde ficava nosso aparelho. Não estava com as chaves e eles demoraram mais de meia hora para chegar. Molhado por uma chuva fina, tremia de frio e medo. Enquanto esperava em baixo da escada que descia para o subsolo onde morava, refletia. Na minha angustia, daquele momento, pensei mais ou menos o seguinte:


O que foi que eu fiz? Assaltei. Quase matei gente. Onde está a política nesta questão? Não farei mais isso. Se for necessário, largo tudo. Largo o partido. Mas onde vou militar? O que fazer, se já sou condenado, procurado, vivendo com outro nome? Não há mais saída. Mas não vou desistir. Não vou para o exterior. O partido está todo caindo, estamos fazendo ações por dinheiro para manter os clandestinos. E cada ação traz mais quedas e mais clandestinos. Poucas armas foram compradas, a grana só dá para nos alimentar, para sobreviver. E a revolução? Será que “a guerra se ganha com os restos”? Serei parte desta sobra dos mortos? Eu nunca cogitei morrer pela causa. Sempre achei para mim um final sem tragédia. Na hora de definir quem participaria, alguns saíram de baixo, deixando a minha escolha como fatalidade. Mas eu também concordei. Também acho que com qualquer um dos outros seria pior. Como é que nunca contestei até hoje, quando os outros eram os que assaltavam? Vacilação pequeno-burguesa? Pode ser a porra que for, não faço mais ação armada. O partido escolhe se me aceita, apenas, como militante político. Estou com medo, com muito medo”.


Lourdinha e o poeta chegaram. Foram longos aqueles trinta minutos de espera. Entramos em casa e eu fui direto para a cama ouvir rádio. Gripado de puro medo.  A notícia só chegou às rádios quase uma hora depois. Fiquei uns dois dias sem sair de casa. Depois recebi um informe de Bruno, com as decisões da Direção Nacional. Primeiro, nós deveríamos comunicar aos companheiros que a ação noticiada nos jornais daquela semana tinha sido realizada pelo partido e, exclusivamente a Lourdinha, avisar que eu fui um dos participantes.


AVALIAÇÕES
Houve uma reunião de avaliação com todos os participantes, exceto eu, para evitar que conhecesse Adeildo e ele a mim. Surgiram críticas ao meu desempenho, principalmente, ao tiro de dentro para fora do carro, que quebrou o para-brisa traseiro. Fiquei irritado e disse que não aceitava. Como eu fui levado a uma ação armada, apenas como soldado, sem conhecer um dos nove participantes? Depois, quando da avaliação em que eu não fui chamado, meu desempenho merece críticas, aceitas pelos demais sem me ouvirem. Não tinha sentido eu ser comunicado através de recado.


O próprio conteúdo da crítica era inaceitável. Até hoje compreendo que o estampido de um revolver nas proximidades dos dois companheiros deve tê-los irritado e deixado meio surdos. Mas fiz com a mesma consciência com que dei os tiros para não acertar os pés do desconhecido: o cano da arma após as cabeças de ambos. Não houve risco de acertá-los.


O fato, porém, trazia de volta uma discussão inconclusa sobre o conflito de autoridade que, à época, foi expresso na seguinte contradição. Em caso de orientações distintas eu deveria seguir as orientações da direção nacional ou do comandante de minha esquadra?


Essa foi uma das inúmeras vezes em que a discussão tinha sido adiada, porque “as dificuldades do enfrentamento diário da ditadura” não nos permitia aprofundar. Começou antes, quando uma certa quantia de dinheiro tinha sido entregue a mim para comprar os móveis para montar a casa/aparelho onde iria morar. Fiz isso comprando moveis usados, menos a geladeira, e sobrou dinheiro. Como eu estava coordenando as ações de propaganda no âmbito regional, pedi autorização e usei parte da sobra para financiar os panfletos de 1º. de maio[3]. Na prestação de contas, o emissário não quis aceitar essa despesa por não ter sido autorizada pelo comandante. Eu insistia que, antes e acima do comandante, eu tinha autorização da direção nacional. Estabelecida a divergência, eu pedi que houvesse uma decisão, mas os companheiros dirigentes da nacional adiaram. Por trás de tudo havia o fato de eu ser tido como encrenqueiro. Eu sabia que o adiamento da questão era mais uma conciliação com a vertente militarista que se ampliava cada vez mais dentro do PCBR. Mas estava diante da decisão de não decidir, por parte da minha direção nacional. Logo, de acordo com meu ponto de vista, deveria acatar. Foi o que fiz.
No caso da ação do banco e as críticas que me faziam, o conflito ressurgia. Prometi e fiz uma carta à direção nacional, expondo meus pontos de vista e dizendo ser inaceitável aquele tipo de comportamento. Quando fui preso essa carta caiu na mão da repressão, e mais do que qualquer reconhecimento de funcionário ou confissão sob tortura de algum companheiro, foi o que me colocou como participante do assalto que eu vinha negando durante mais de dez dias de porrada.


Quero registrar tudo isso aqui, porque sempre achei exagerada a minha fama de guerrilheiro. Na verdade, foi o assalto ao Banco da Bahia da Liberdade, o meu primeiro e único enfrentamento armado. Certamente haveria outros se a repressão aparecesse, por exemplo, em uma das nossas pichações. Mas não apareceu, não houve enfrentamento, não acumulei experiência. Não participei da “operação pinga fogo”, não ocupamos os transmissores da rádio Cabugy de Natal, fui preso antes de ter tentado um sequestro aqui na Bahia. Também debito parte da falsa fama à ansiedade do DOI-CODI da Bahia que, no afã de se auto elogiar, transformou a minha prisão com Theodomiro em algo extraordinário. Não precisariam explicar como prenderam dois pretensos guerrilheiros perigosos e não executaram o procedimento elementar de os revistar e desarmar.


Embora valentíssimos quando estávamos no pau de arara, os torturadores eram pessoalmente frouxos. O coronel Bião[4], já tinha tomado um tiro na bunda numa outra prisão de assaltantes comuns e se trancava em um quartel cada vez que saíamos (algemados e escoltados) para a auditoria. Eu era parte da teatralização de eficiência e coragem. Logo, deveria ser retratado como agente de extrema periculosidade.


A partir do assalto, ficamos na dependência de novas orientações da direção nacional. Depois fiquei sabendo que o dinheiro deixado na calçada seria para financiar um sequestro em Recife. Com as prisões de Chico, Vera e Nancy lá, e o nosso fracasso aqui, inverteram-se as tarefas. O pessoal de lá faria um assalto para financiar um sequestro que faríamos aqui em Salvador.


Quanto mais prisões, mais o PCBR ficava arrogante. Como os demais, nós nos achávamos os mais lúcidos e corretos. Não nos assumíamos como “foquistas”, embora dizendo que o caminho da revolução era o foco guerrilheiro rural. Acrescentamos outra guerrilha local, de meio de caminho, e outra urbana. Com isso, a nossa concepção, admitindo ou não (e não admitíamos) era basicamente militarista. Nossos quadros políticos iam cada vez mais se militarizando. Com as prisões, a partir de janeiro de 1970, isso foi se agravando até o fim. Até quando me considerei fora, ainda na prisão, por volta de 1975 e mesmo depois do fim da ditadura. Encerrei minha participação no segundo partido que militei. Só voltei a ter uma referência partidária quando saí da prisão, militando no PT.


SEQUESTRO ABORTADO
Inviabilizado o planejamento inicial, e fracassadas as tarefas que nos atribuíram, a Direção Nacional determinou que no Recife se faria uma expropriação para levantar dinheiro e, na Bahia, se sequestraria um diplomata para trocar por presos. Isso demonstrava que, em 1970, tínhamos, apenas, dois núcleos capazes de um enfrentamento. Ambos localizados no Nordeste, pois o Sudeste tinham sido esvaziados pela repressão.


E o grupo da Bahia, além de fragmentado, não pertencia à estrutura local, pois era composto por pessoas em deslocamento. Os que vinham do Rio e se dirigiriam a estados mais acima. Somando-se Alberto Vinicius, que, vindo de Recife, se dirigia ao Paraná.


O PCBR era um partido pequeno e de frágil estrutura. Em 1970, quase todos as organizações clandestinas eram afetadas com alguma prisão importante, mesmo que geograficamente distante. Foi o caso das prisões, em Recife, de Chico de Assis, meu amigo de militância e farras desde o CLML, Vera Rocha, recrutada na base trotskista de Fortaleza, e Nancy Mangabeira Unger, oriunda do Rio de Janeiro. A prisão em si já foi dramática, com resistência armada, queima de documentos, tiros de ambos os lados e ferimento grave em Nancy.


 Em ação recente, militantes do PCBR tinham ferido gravemente o tenente da aeronáutica Mateus Levino Ferreira, que agonizava num hospital. A repressão estava enlouquecida. Com a queda em Recife, a repressão descobriu que se preparava um sequestro para trocar um diplomata por presos.


Não contesto a necessidade de soltar nossos companheiros. Tínhamos muitos presos e era perfeitamente lógico para as organizações armadas da época querer libertá-los. O que ponho em dúvida hoje é se tínhamos capacidade de realizar aquelas ações. Também deve ficar claro que, na maioria das vezes, eu concordava com o voluntarismo do PCBR, afinal, inteiramente compatível com a minha forma de militância.


Eu também ficava tentando conceber alguma forma de romper o cerco político em que nos encontrávamos, desde o Ato Institucional Nº.5. Cerco que ia se agravando. Acumulando derrotas e nos deixando num ciclo vicioso. Fazíamos ações e tínhamos como consequência prisões e mais pessoas na clandestinidade que nos levavam à necessidade de mais ações. Dinheiro para manter os clandestinos e necessidade de soltar presos. Fazíamos mais ações com as mesmas consequências.


Então iriamos sequestrar um cônsul dos USA. Ele trabalhava no Garcia e morava em Brotas. Os companheiros do Rio de Janeiro, que estavam aqui, fizeram todo o levantamento. Todas as tardes, por volta das 17h, ele saia do escritório, descendo diretamente a Ladeira do Garcia, para a Av. Vasco da Gama. Normalmente, além do motorista, havia um segurança. Às vezes, apenas um. E havia ocasiões em que ele mesmo dirigia, com um deles ao lado. Após o retorno na avenida Vasco da Gama, antes de chegar ao Rio Vermelho, o carro, naturalmente baixava velocidade, pois começa a subida da Ladeira do Acupe para chegar até Brotas.


Mesmo sem ter obtido resposta à minha carta de reclamação, meus erros no assalto ao banco não devem ter sido considerados tão comprometedores, pois fui escalado para o sequestro. À época a Ladeira do Acupe era mais estreita e sua inclinação levava os veículos a subirem com menor velocidade do que hoje. Era ladeada no início por uma garagem de ônibus, que ficava à esquerda, e por um descampado com pouco mato, à direita. A ação começaria, exatamente, aí. Um carro nosso fecharia o veículo, saindo do descampado, enquanto outro colaria no fundo. A abordagem seria feita por alguém que falasse inglês e outros com determinação suficiente para atirar no segurança, em caso de reação. Terminada a ação eu voltaria para minha casa sem acompanhar o desenrolar. Minha função, portanto era só de soldado.


Provocado por mim se discutiu a possibilidade de algum dos presos solicitados não aceitar ir. A orientação de Bruno, e que nos convenceu, foi de que, estando na lista, o preso não tinha escolha. Iria com os demais e lá no exterior, caso quisesse, que voltasse e se entregasse à prisão.


Tínhamos por obrigação avisar aos aliados, principalmente, às organizações com que nos relacionávamos, que faríamos uma ação de grande repercussão repressiva. Fui comunicando pessoalmente à AP, POLOP, MR.8. Lucia Murat, mesmo sem saber do que se tratava, ponderava que a Bahia deveria continuar como área de recuo, enquanto eu reafirmava a posição do PCBR. Eu não podia dizer exatamente do que se tratava a nossa ação, mas ela desconfiou, porque, internamente, era solicitada a dar informações sobre presos políticos da região.
 
No último encontro com Lúcia, avisei-a de que só nos encontraríamos depois que a poeira baixasse. Ela mais uma vez reclamou e me passou uma informação fechada em um pedaço de papel, me avisando: “Trata-se do endereço de um aparelho que a polícia acompanha e apenas espera o melhor momento de invadir. Já verificamos e não é nosso. O código é a data do manifesto comunista. Veja quem de sua organização está autorizado a abrir e veja se é de vocês”. 
 
Aquele dia de outubro seria como outro qualquer. Daqueles tensos, duros, dormidos aos pedaços a cada noite. O fim da tarde era lento como o ônibus velho que me trazia para casa na Cidade Nova. Ao decodificar a informação, tomei um susto. “C. Nova” era o nome do bairro onde, acabara de ser informado, a Polícia Federal localizara um “aparelho”. 
 
Menos do que falta de medo, foi o voluntarismo e desconfiança de não ser eu o alvo da repressão que me fez ir em frente. Nem desconfiava que já estivesse sendo seguido há mais de 10 dias. Tenso, olhei todos os cantos e desci para a rua onde morava. Chamei o companheiro Prestes de Paula na casa da namorada e numa rápida reunião, já no aparelho, decidimos sair levando apenas armas e uma muda de roupa. Descemos por um descampado estreito do pequeno matagal que nos ligava nossa rua à Avenida Bairros Reis.


Impossível ir em frente sem saber a dimensão das informações policiais. Escapamos naquela noite e, provavelmente, um agente diplomático livrou-se de um sequestro, talvez da morte, pois a ditadura endureceu e não libertou os presos solicitados num sequestro que ocorreu depois, o do embaixador suíço, no Rio de Janeiro. 


No dia seguinte iríamos pegar o cara na Ladeira do Acupe. Tudo preparado: carros puxados, casa alugada com quarto revestido de isopor, escalados quais de nós fariam a abordagem, quantos dispersariam e os que ficariam responsáveis pela guarda. A polícia ficou até hoje sem saber que desarticulou, involuntariamente, uma ação espetacular. Até tiveram indícios, mas pensaram que o alvo seria o general comandante da Região Militar.


As nossas discussões indicavam que não aceitaríamos qualquer negativa, nenhuma negociação de nomes e nenhuma recusa, mesmo do interessado. A forma autoritária indicava a nossa determinação e também o temor de alguém ser coagido a não aceitar a troca.


A história posterior demonstrou que não conseguiríamos o objetivo de libertar o máximo de presos. Não tínhamos a menor noção de que o esquema repressivo já tinha deliberado não ceder tudo no próximo sequestro, executar sequestradores, usar a censura à imprensa e manipular as informações na plenitude. Além de coagir alguns a não aceitarem ir para o exterior, preferindo “ficarem presos no próprio país”, foi o mínimo que ocorreu naquele final do ano de 1970. Nem imagino o que nossa imaturidade poderia aprontar, se aquela longa tensão das negociações do sequestro do embaixador suíço, caísse em nossas mãos.  Sem saber, eu estava novamente a caminho da prisão ou da morte. E não existia alternativa que não fosse trágica.


Passamos mais uma semana de sobressaltos e noites mal dormidas. Abortar o sequestro implicava se desfazer dos carros que haviam sido puxados, alguns com bateria descarregada, empurrando-os em plena madrugada.


Com uma movimentação de militares nas proximidades de um aparelho na Av. Vasco da Gama, subimos pelo fundo até a Avenida Cardeal da Silva. Fomos direto para o Edifício Carimbamba, no Jardim de Alah, cujo aparelho era o mais visado. Algumas moradoras “de programa” do prédio eram frequentes prestadoras de serviços sexuais aos policiais federais e comentaram sobre nossa movimentação. Era estranho para elas que jovens não quisessem dar umas trepadas, de vez em quando. Não era moralismo, mas questão de segurança. Nenhum estranho poderia entrar num dos nossos aparelhos. Fomos abandonando este e os demais.


Aluguei uma minúscula casa recém-construída numa pirambeira da Fazenda Grande. Decida por uma escada cavada no próprio no barro da ribanceira, uns oito metros abaixo do nível de uma rua secundária. Lá deixamos armas e roupas. Foi também onde ficou Lourdinha, quando fomos cobrir o ponto que nos levou à prisão. Bastou a polícia não saber que a casa existia e foi fácil inventar que Lourdinha estava de viagem para Recife.


Após devolver os carros para as ruas e abandonar os aparelhos supostamente conhecidos, era necessário que os companheiros vindos do Rio deixassem a Bahia. Aqui ficaríamos eu, Theodomiro e Dirceu como dirigentes, pois tanto Frederico Meneses quanto Renato Ribeiro haviam saído do Partido e se dirigido ao exterior. Os universitários Renato Afonso, Roberto Albergaria e Wagner eram muito iniciantes. Nossa prioridade era descartar objetos, recuar pessoas, limpar e abandonar estruturas de aparelhos.
Foi nas providências de desmobilização que eu e Theodomiro fomos presos. Marcamos um encontro com Getúlio, que nos entregou dinheiro para manutenção durante um tempo. Lá mesmo no ponto, decidimos que Dirceu deveria voltar para Remanso até ser chamado. Por isso ele foi dispensado e continuamos andando, na margem do Dique do Tororó até sermos abordados.


Bahia Notícias

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