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Sensação literária japonesa questiona o que é ser 'normal'

Sayaka Murata, 39 anos, é um dos grandes nomes da nova literatura japonesa. Seu décimo livro, Querida Konbini, é o primeiro a ganhar tradução para o português e chega ao Brasil pela editora Estação Liberdade depois de vender 700 mil exemplares no Japão e ser traduzido para outros 17 idiomas.
Sayaka Murata
A escritora japonesa Sayaka Murata, cujo livro 'Querida Konbini' está sendo lançado no Brasil  Foto: KENTARO TAKAHASHI
A história tem fascinado tanta gente porque coloca diversos pontos de interrogação sobre o comportamento padrão da atual sociedade – é uma dica de leitura para todo escritor de autoajuda, em especial aos que publicam receitas práticas e simples para se viver melhor. Aquele que se considera um “cidadão de bem” e vive a combater quixotescamente o mau do mundo, como o Cabo Daciolo em sua promessa de destruir as estátuas da Havan, talvez se surpreenda com o romance japonês. 

A crítica parte do ponto de vista de uma mulher que busca o tempo todo não causar estranheza pelo seu jeito de ser, mas quanto mais ela procura meios para passar desapercebida, mais ficam gritantes essas peculiaridades. A protagonista e narradora é Keiko Furukura, de 36 anos, que o jornalista Nicolas Gatting, do Japan Times, definiu muito bem: “mortalmente séria em circunstâncias absurdas”. E essa dualidade é a principal artimanha encontrada pela autora para trazer humor em situações que poderiam ser apenas de repulsa.

Keiko trabalha há 18 anos em uma loja de conveniência (Konbini, em abreviação no japonês). A família e as amigas insistem para que ela procure um emprego melhor, mas a padronização e as regras daquele estabelecimento lhe dão conforto. É o lugar onde se sente de fato compreendida, pois existe um manual de conduta que torna os funcionários iguais. Ela acredita que consegue ouvir a loja e antever o que os clientes vão precisar. No entanto, nunca foi efetivada de cargo.
A dificuldade para pertencer ao mundo vem desde a infância. Quando criança, bateu com a pá na cabeça de um colega de classe e não entendeu o motivo de levar bronca dos professores, já que o aluno estava atrapalhando a aula. Também não entendeu a lógica de os amigos terem a ideia de enterrar um pássaro morto na praça. Para ela era muito mais sensato colocá-lo na churrasqueira.
Mais velha, em visita à casa da irmã, conta: “O bebê começou a chorar. Minha irmã correu para pegá-lo no colo e ficou tentando silenciá-lo. Olhei para a pequena faca que havíamos usado para cortar o bolo pousada sobre a mesa. Minha irmã parecia estar sofrendo tanto, coitada... Pensei que se o objetivo era apenas fazer o bebê ficar quieto, seria bem fácil. Limpei os lábios sujos pelo creme de bolo e assisti enquanto ela embalava o filho.”
Keiko nota muito claramente a influência que os outros têm sobre ela. A protagonista percebe que está se expressando no mesmo tom de uma colega de trabalho. Ao mesmo tempo, passa a se vestir como outra funcionária, que tem mais ou menos sua idade. Suas roupas passam a ser elogiadas pela irmã e Keiko se sente bem com isso. 
A busca para agradar aos que estão a sua volta chega ao ponto de ela fazer um acordo absurdo com Shiraha, seu colega de trabalho misógino e sociopata. Ela oferece casa e comida em troca de um relacionamento de fachada. “É como um animal de estimação”, diz. Assim, tem a expectativa de que a família e os amigos pararão de importuná-la com o fato de nunca ter tido interesse por sexo. 
A autora, assim como a protagonista, trabalhou em loja de conveniência, período que considerou importante para reparar no comportamento das pessoas e ter tempo para escrever. A seguir, a entrevista que Murata concedeu ao Aliás por e-mail. 
Qual foi o impacto que seu livro causou no Japão?
A personagem que “se torna um ser humano” por meio da imagem fria de um manual, parece ter impressionado bastante os leitores. “Sou uma pessoa normal, no entanto, não sei mais o que ‘normal’ significa”, disseram muitos deles.
Por que acha que essa obra ganhou também tanta notoriedade em outros países?
A ideia de que uma loja de conveniência excessivamente cortês seja típica do Japão é surpreendente, mas acho que um pouco dessa notoriedade talvez se deva ao interesse por esse aspecto japonês. Além disso, o desconforto em relação à ideia de “normalidade” é um tema ubíquo, ele ultrapassa épocas e culturas, talvez haja esse aspecto com o qual seja fácil simpatizar.
Quem é Keiko Furukura na sua opinião?
Keiko Furukura é um “espelho”. É uma existência que reflete a natureza genuína das pessoas ao seu redor. Quando uma pessoa que se considera normal é colocada diante dela, imagino que ela deva ficar estupefata ao ver sua própria figura bizarra refletida nesta última.
Você trabalhou em uma loja de conveniência. Sofreu algum tipo de preconceito como a protagonista?
As pessoas próximas nunca me disseram nada, mas me senti desconfortável quando um rapaz do turno da noite comentou maldosamente que eu não devia fazer bicos na minha idade e me disse que devia arrumar uma namorada logo.
‘Querida Konbini’ questiona o comportamento padrão. Você acha que o mundo, de uma maneira geral, está evoluindo para aceitar as diferenças?
Sim, acredito. Um editor por quem tenho respeito disse que ler romances expande a existência. Acredito que imaginar a vida de outras pessoas expanda nossa existência e nos faça aceitar pessoas diferentes de nós, essa é minha esperança.
Outro tema abordado no livro é o machismo. Como você vê a questão de gênero no Japão e no mundo?
Fui pressionada a ser uma “garota bonitinha” desde a infância, isso era muito penoso e eu não sabia quem eu era por um bom tempo. Consegui me afirmar graças aos livros. Acho que o sexismo está profundamente enraizado no Japão e, em certos casos, muitas pessoas sequer são capazes de perceber o que estão sofrendo. Entretanto, acredito que as coisas enfim estejam mudando pouco a pouco. Tenho esperanças disso.
É cada vez maior o número de pessoas que optam por se fechar em um universo particular e evitam o convívio social. O que acha disso? 
Não acho que viver em um mundo próprio seja ruim. É belo viver em um mundo peculiar, que só nós conseguimos ver. Embora acredite que seria ainda mais belo se pudéssemos mostrá-lo para os outros e apreciar os mundos uns dos outros.
Como é ser escritora no Japão? Você consegue viver apenas dos livros?
No Japão, a maioria dos escritores se vê pressionada por prazos. Há muitos que publicam vários livros por ano. Eu não consigo escrever múltiplas obras ao mesmo tempo, por isso escrevo devagar. Há editores com os quais posso contar, nós bebemos, conversamos e estabelecemos uma relação de confiança. Atualmente posso viver apenas da minha atividade como escritora.
O que você anda fazendo? Já tem data para a publicação de um novo romance?
Um novo livro chamado Habitante do Planeta Terra (Chikyu Seijin) foi publicado há pouco. A narrativa é mais idiossincrática, triste e grotesca do que a de Querida Konbini. Não trabalho mais em uma loja de conveniência, então entro em um café e escrevo enquanto bebo chá preto. Estou escrevendo uma nova obra atualmente. 
Estadão

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