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Marco Lacerda lança best-seller em BH

'As Flores do Jardim da Nossa Casa' é uma história que agarra o leitor pelo colarinho a partir da primeira página e o leva até a última, sem lhe dar um minuto de trégua.
'As flores do jardim de nossa casa' não é um livro adequado para pessoas que procuram uma literatura amena.
'As flores do jardim de nossa casa' não é um livro adequado para pessoas que procuram uma literatura amena. (Reprodução)

O jornalista e escritor Marco Lacerda tornou-se conhecido do leitor brasileiro depois de lançar o livro "Favela High-Tech", onde esmiúça a dura realidade dos brasileiros que vão tentar a vida no Japão. A obra, resultado de sua experiência como correspondente internacional, acabou transformando-se em best seller já adaptado para o cinema pela Gullane Filmes de São Paulo, com o título “Neon River”. Mostrando que tem muito a oferecer ao mercado literário, Lacerda escreveu "Clube dos homens bonitos" e, mais recentemente, "As flores do jardim da nossa casa".
Este último acaba de ser lançado em Lisboa e no Porto pela editora portuguesa Chiado Books. A edição portuguesa terá lançamento em Belo Horizonte nesta sexta-feira, dia 23 de novembro, a partir das 18h, no Centro Cultural Helder Câmara (Rua Álvares Maciel, 628 – Santa Efigênia – Tel: 31.2125-8800). Durante o evento será oferecido coquetel e haverá participações musicais de Fernando Sodré (viola), Maurício Troian (violão) e Leda Tavares de Farias (piano).
O autor, Marco Lacerda
O autor, Marco Lacerda

Depois de um assalto, no dia em que fez 40 anos, dois amigos de Marco Lacerda o encontram no apartamento em que morava nos Jardins, em São Paulo, e soltaram as cordas que o mantinham imobilizado sobre sua cama. Esse assalto com requintes de crueldade é o fio condutor da história que Marco conta em "As Flores do Jardim da Nossa Casa": uma história que agarra o leitor pelo colarinho a partir da primeira página e o leva até a última, sem lhe dar um minuto de trégua para respirar.
Com seu texto ágil e afiado, Lacerda envolve o leitor sem deixá-lo saber onde termina a realidade e onde começa a ficção, deixando-o perplexo, encantado, machucado e estupefato com o final surpreendente.
Em entrevista o autor fala das dificuldades e exigências do mercado editorial:
Qual foi a estratégia adotada para o lançamento do livro num mercado editorial tão difícil como o do Brasil?
No início, a editora pensou em incluir uma faixa na capa do livro (o famoso arco-iris) para caracterizá-lo como gay. Me pareceu coisa de gueto e isso nunca me agradou. Tudo indica que as estratégias de marketing, hoje em dia, obedecem a regras caprichosas e muitas vezes tirânicas. Se você quer se dirigir ao público gay, muçulmano, esportivo, seja lá qual for, é preciso acenar de forma clara para esse público. Caso contrário, você vai ficar falando sozinho e o seu trabalho vai passar batido. Importante: Apesar de se chamar “As flores do jardim da nossa casa”, não se trata de um livro sobre jardinagem. Felizmente, o pior não aconteceu: até hoje não saiu nenhuma crítica na revista Casa&Jardim.
Atingir o público gay era uma prioridade sua, da editora ou de ambos?
Quando sentei para escrever "As flores...", não era este o livro que eu tinha em mente. Mas, acredite se quiser, histórias têm vida própria, elas querem ser contadas, vir a público, ser transpostas para o papel ou alguma outra forma de comunicação. A história que eu conto em "As flores..." estava atravessada na minha garganta havia dez anos. E ela se impôs. Trata-se de uma autobiografia, cujo fio condutor é um assalto de que fui vítima no meu apartamento no sétimo andar de um edifício nos Jardins, em São Paulo, onde eu morava. Sem que eu percebesse, um garoto com quem passei uma noite regada a álcool, aditivos de todo tipo e sexo trepidante - em alguns momentos até parecido com amor - arma uma cilada e organiza a invasão da minha casa por dois comparsas. Eles me amarraram, amordaçaram, "limparam" o apartamento até chegar ao desfecho do pesadelo: assassinar-me a facadas.
Como tem sido a receptividade ao livro?
“As flores...” ficou entre os dez finalistas indicados ao Prêmio Jabuti. Ninguém poupou adjetivos. O Ignácio de Loyola Brandão, por exemplo, na crítica que escreveu na Vogue Brasil, diz que "é um livro que se lê de um fôlego, para perder o fôlego, um texto brilhante, bem humorado, mas também cáustico, cruel para com o autor e a sociedade”.
Você considera "As flores do jardim de nossa casa" um livro gay?
Por mais contraditório que pareça, não. Não é um livro adequado para pessoas que procuram uma literatura amena. O livro é um desnudamento total, sem pudor. E é muito alto o preço que se paga ao encarar uma aventura dessas. Perdi amigos, parentes queridos se afastaram de mim. Todos sempre souberam da minha homossexualidade, mas são partidários da hipocrisia, da mentira, da prisão do "armário". Relutei muito tempo em escrever esta história, com certeza porque imaginava as consequências que me esperavam. Mas como eu disse antes, de tanto relutar, a história parece ter-se rebelado e decidiu revelar-se por conta própria.
Você acredita que produtos culturais produzidos por gays precisam ser identificados como "feitos para e por gays"?
Não necessariamente. "As flores do jardim da nossa casa", embora tenha conteúdo gay, navega por outras praias com a mesma desenvoltura e intensidade. É um livro que deveria interessar a gays e não-gays. Vai dos ideais de paz e amor dos anos 60 aos anos de chumbo que vivemos até hoje, quando preconceitos de todo tipo mantêm milhões de pessoas ao redor do planeta encarceradas em si mesmas, impossibilitadas de viver na plenitude de alegria, amor e liberdade para os quais foram criadas.
Sem querer cair na cilada da vitimização, o preço, nesse tipo de situação, pode ser alto demais, pois te fere na parte mais sensível da sua natureza. Amigos com os quais há anos mantive laços fraternos e cordiais agora cochicham insultos a meu respeito, pelas minhas costas. Se eu me arrependo de algo? Pelo contrário, faria tudo outra vez.
Leia abaixo críticas e um trecho do livro "As flores do jardim da nossa casa", de Marco Lacerda.
Crítica da Folha de São Paulo

Lacerda faz novela com referências reais
 
Por Marcelo Pen / Crítico da Folha
 
Descrito como "autobiografia não autorizada", "As Flores do Jardim da Nossa Casa" é em parte um livro de não-ficção, em parte "roman à clef", em parte um romance propriamente dito. Marco Lacerda -jornalista que escreve em grandes veículos da imprensa e autor de "Favela High Tech", cujos direitos de filmagem foram comprados pela produtora Gullane Filmes, de São Paulo- conta, em parte, sua história aqui.

Mas, como nem tudo pode ser dito no Brasil sem açular a ira da indústria do processo, alguns personagens recebem nome falso. Cabe ao leitor, munido das dicas fornecidas pelo livro, descobrir quem seria quem. Daí a porção "roman à clef" (literalmente, romance com chave), em que figuras conhecidas se ocultam sob a capa da ficção. Há, igualmente, o lado ficcional, nem sempre fácil de separar do relato, pois os elementos narrativos mais ostensivos -como o uso da reviravolta, do gancho e do suspense- espalham-se pelo livro.

A própria história começa de modo dramático. Na véspera de completar 40 anos, o narrador é despertado de seu sono narcômano por dois assaltantes, que o ameaçam de morte. O reconhecimento de um deles pelo narrador -o criminoso é um ex-garoto de programa que ele conhecera em Belo Horizonte- dá início à longa seção rememorativa que ocupa o centro da obra e traz implicações para o desenrolar da trama.

E, no fulcro desse "de profundis" memorialístico, está a figura do pai. Alcoólatra, taciturno, violento, agressor da mulher, que não perdoa o comportamento sexual filho. Não é à toa que as relações sexuais do filhos não se pautem pelo amor, mas por imagens de posse, de poder, de perdição, de inferno.

A primeira relação do narrador é com um estuprador; a segunda, com uma "fera dissimulada", além do garoto de programa/assaltante de cujos olhos grandes "chamas saltam". Sua experiência lhe ensina a ver a genitália como uma "armadilha que o pode levar ao fogo do inferno".

Pena que todas essas inferências, fortes, embora nada politicamente corretas, se percam, às vezes, em digressões sobre a carreira. Lacerda, por exemplo, faz questão de mencionar como conheceu Caetano Veloso, quando o cantor "era estrela com brilho próprio, e esse brilho, o tempo haveria de provar, era eterno", para em seguida gravar com o menestrel uma entrevista que marcou época nos anos 70.

São platitudes acessórias desta obra corajosa. Felizmente, para a narrativa, logo vêm a epidemia de Aids e a morte do pai. Curioso que os dois fatos, de causas desvinculadas, ocorram quase ao mesmo tempo. Uma paixão do autor morre, vítima da doença, enquanto o algoz paterno sucumbe aos percalços de uma vida conturbada. Ambos ressurgirão, na pele do assaltante. Amor e morte andam juntos aqui.
Crítica do Estado de São Paulo

As Flores do Jardim da Nossa Casa é um relato marcado por verdade cortante
 
Agencia Estado
 
Um detalhe chama a atenção no livro “As Flores do Jardim da Nossa Casa”, que Marco Lacerda lança no Ritz Itaim, em São Paulo: trata-se de uma autobiografia não autorizada. Ou seja, uma intrigante narrativa em que a fronteira entre ficção e realidade se revela enevoada. "Nunca pensei que tivesse força de vontade suficiente para chegar aos 40 anos, mas já que cheguei...", escreve ele, logo nas primeiras linhas, ainda despreparado para o que vem em seguida: na véspera do aniversário, é assaltado em seu apartamento, nos Jardins paulistanos, e só é resgatado por dois amigos que o soltam da cama onde ficou amarrado. É o início de um relato marcado por uma verdade às vezes cortante, que oferece o retrato de uma geração que, mesmo oprimida pelo regime militar e sua brutalidade configurada na tortura acontecida nos porões, buscou conhecer o Brasil e as alternativas exteriores, onde ainda se respirava liberdade.
Crítica do Digestivo Cultural

O romance espinhoso de Marco Lacerda
 
Por Daniel Lopes / Crítico

Em artigo na revista Carta Capital, o crítico José Onofre lamentava o atual estágio da literatura mundial. Segundo ele, hoje o que há, salvo raras exceções, "é uma organização das palavras sem o sentimento verdadeiro que deveria estar por trás. Falta aquela sensação que se tem diante de uma casa escura, uma estrada vazia, um cheiro de fogo".

Bem, entre as exceções a essa fraqueza certamente está Marco Lacerda. Pena que esse experiente jornalista que é também ficcionista, por obrigações do primeiro encargo, tenha tão pouco tempo de sobra para dedicar ao segundo. “As flores do jardim da nossa casa” é apenas seu terceiro livro, precedido por Clube dos homens bonitos e Favela High-Tech, que é o mote de um filme a ser lançado em breve.

Ler ‘As flores...” prova-se um interessante exercício. De início, seu subtítulo é "Autobiografia não autorizada". Assim que me chegou um exemplar do romance, porque é assim que a editora o cataloga, tomei a decisão de não ir atrás de saber da vida do autor, para poder separar direitinho o que é e o que não é ficção no livro. Há fatos relatados que, conhecendo detalhes básicos da biografia do Marco, sabemos ser autobiográficos, outros que podem ser autobiográficos, alguns que obviamente são ficção, e outros que provavelmente o são. O melhor remédio para esse jogo, tanto para o leitor como para o resenhista, é tratar o personagem principal do livro como simplesmente "o narrador".

Pois bem. Nas primeiras páginas, o narrador está em seu apartamento em São Paulo, no dia do seu quadragésimo aniversário. Esperava subir alguém chamado Caio, e de repente, da portaria, lhe avisam que um Caio pede autorização para subir. Ele concede, mas o Caio que sobe não é Caio nenhum, e sim um assaltante junto com um comparsa. Ele é feito refém, amarrado à cama. Depois de algum tempo, reconhece um dos bandidos. Trata-se de Benício, de quem anos atrás fora grande amigo, quando ainda morava em Belo Horizonte.

Então começa o flashback. Enquanto é mantido sob ameaça de morte, nosso narrador vai lembrar de sua infância, juventude e início da vida adulta, que se desenrolam em um Brasil conturbado, aquele dos anos 60, 70 e 80, sem se furtar a generosas descrições do milieu político-cultural em que está inserido. O, vamos lá, Lacerda-narrador, descreve passagens da história brasileira com a qualidade do bom repórter que é.

Seus primeiros anos, passados em Belo Horizonte, foram marcados pela relação complicada com os pais - o pai, um alcoólatra amargurado que espancava a esposa, mas que no começo mostrou-se amistoso com o filho; a mãe, um ser passivo, que acreditava estar nada mais que cumprindo o papel que lhe cabia em uma sociedade que definia o lugar e o enredo a ser seguido por uma mulher, de subjugação, de resignação, de renúncia a qualquer prazer.

Ainda na infância, o narrador tem sua primeira experiência homossexual, sendo estuprado por um garoto poucos anos mais velho. O pai toma conhecimento do ocorrido, leva o filho a uma visita ao psicólogo, e tudo parece ficar entendido entre eles - que aquilo não se repita. Dias após, quando o menino vinha da casa de um amigo e encontra o pai na rua, voltando para casa, bêbado, este lhe alerta: "Só se comete o mesmo erro uma vez na vida". Aquele drama da infância iria tornar-se um elemento a mais no longo e surdo conflito entre pai e filho.

Anos depois, nosso protagonista, já um jovem, inicia sua carreira jornalística meio sem querer, via Estado de Minas. Na Belo Horizonte da época da Ditadura, o mergulho nas drogas e em mais experiências homossexuais, num submundo de hippies e loucos. Foi quando conheceu Benício, que trabalhava como frentista num posto de gasolina apenas para dar satisfação à mãe, e cuja renda vinha mesmo era dos programas que fazia pela noite, com homens endinheirados e de todas as idades.

Como esse vigoroso jovem Benício foi parar, anos depois, como casual assaltante de um ex-amigo? Como e por que ele "não sairá com vida" dessa estória? Sim, porque ele não sairá com vida, somos avisados logo no início da obra. Quem ler As flores..., encontrará as respostas.

Quando o jovem jornalista recebe um convite para trabalhar no Jornal da Tarde, de São Paulo, não perde a oportunidade de se mudar para aquela metrópole em constante ebulição. Também lá, presencia repressão, experimenta drogas e mais "sexo proibido", vê a Jovem Guarda que embala jovens e adultos, entrevista Caetano Veloso, vê um show de Ney Matogrosso: "No palco, Ney era uma figura estranha, meio homem, meio mulher, rosto coberto por uma maquiagem que tornava impossível reconhecê-lo de cara limpa. Cantando, mostrava os dentes afiados de fera criada com carne crua. Dançando, era uma mistura de Nijinski e Rodolfo Valentino."

O narrador fará suas primeiras viagens internacionais, primeiro para Cuba, como correspondente de uma revista brasileira de moda, e depois para São Francisco, Califórnia, como aventureiro. Lá, foi testemunha da violência da AIDS, uma praga que diariamente arruinava punhados de vida, e participou de atividades comunitárias e espirituais levadas a cabo por integrantes do movimento zen, o que mudaria sua vida para sempre.

Algo que pode desapontar alguns leitores: umas boas dezenas de páginas lá pelo meio do livro são pura reportagem, com a descrição do Brasil dos anos de chumbo. Isso pode não agradar os mais puristas, que não gostam de blocos de ficção e de não-ficção unidos numa mesma obra. Mas a verdade é que com alguma sensibilidade se compreenderá que tais páginas não quebram, e sim adicionam ao ritmo que Marco Lacerda busca dar à narrativa, que prende a atenção, diverte e emociona muito. E quantos romances com tais características você leu nos últimos tempos?
Trecho do livro
 "Me envolvi com Benício a ponto de me sentir extraviado num destino alheio. Confiava em sua figura maciça, na cara onde sobressaíam um olhar intenso, curioso, e uma barba indomável: mal ele acabava de raspar, tinha-se a impressão de ver uma nova camada de pelos sombreando-lhe o rosto. Respeitava a autoridade de sua voz em noitadas em botequins de subúrbio, entre ladrões, traficantes, gigolôs, todos garotos como ele, que varavam a madrugada falando aos gritos e ao mesmo tempo, e amanheciam em volta das mesas, cegos pela bebedeira, dormindo com as cabeças penduradas para trás, entre copos pela metade e restos de comida. Sentia-me em casa ao redor desses garotos solitários e brutos, unidos entre si por um elo inconfessável de ternura, a quem as canções sertanejas umedeciam os olhos e davam uma saudade remota do único ser humano capaz de lhes inspirar algum respeito, a mãe. Aos primeiros raios de sol penduravam as mochilas nas costas e se despediam com gestos e frases próprios do grupo, hasta la vista, mano, e desapareciam nos becos fétidos daqueles bairros esquecidos, levando com eles a contradição de sua miséria bem vestida, e só voltavam a se encontrar nas páginas dos jornais, no noticiário policial, onde o cadáver de um deles, mais dia menos dia, aparecia perfurado de balas."

Dom Total

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