- Eu mesmo não, mas tenho comigo a Hóstia consagrada; quer que volte com ela ao Sacrário ou deseja recebê-la?
A face dela iluminou-se e eu senti que a montanha estava removida.
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Muitos dos nossos atos são mais atos divinos, encarnados em nós e através de nós poderosamente fecundos.
Não lhes damos maior importância. Ficam, às vezes, escritos em corações mais delicados. Marcam espíritos mais penetrantes e mais fiéis às falas interiores do Altíssimo.
Acredito mesmo que Deus, em certas fases menos perfeitas, agitadas ou assoberbadas, quer que não se saiba o que se fez de profundo e de definitivo para este ou aquele irmão. Poderíamos estragar um trabalho que foi do céu e nosso, mas muito mais de Deus do que de um homem.
Foi durante o Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955.
Procurado por Celina Didier, minha amiga de Recife, chegada a mim por ser da Ação Católica, discípula de meu irmão D. João Batista Portocarrero Costa, de saudosa memória, fui atender a uma jovem esposa de um jovem médico, ambos de Recife e muito cristãos.
Ela desenganada, na tenda de oxigênio, entre a vida e a morte. Ele desolado, vendo-a desesperada, revoltada contra tudo e contra todos, também contra Deus e contra ele que não lhe restituía a saúde.
Fechara os olhos para não ver ninguém. Não admitia que lhe falassem de nada. Não queria os Sacramentos. Rejeitava receber qualquer visita.
Celina advertiu-me da situação. Eu lhe disse ao ser por ela convidado a tentar acalmar a querida moribunda: não irei sozinho.
- Não me atrevo a lhe dizer que leve pessoal alguma com o senhor, disse-me aquela amiga.
- Entenda-me, Celina, quero dizer que conduzirei comigo a Hóstia de amor, a Jesus na Eucaristia.
Da Rua Voluntários da Pátria, 287, à Rua Humaitá em frente à Escola de Serviço Social é bem perto. Não custamos a entrar no apartamento onde se encontrava o distinto casal esmagado pela desventura de um sofrimento sem remédio.
Ao ver a jovem enferma, inspirado certamente, fui lhe dizendo que Deus a queria muitíssimo. Estava a ouvir sua oração feita de desespero e revolta. Eu que não era ninguém, comparado com Deus pelo que ouvira de Celina, admirava-lhe a oração do desespero e da revolta.
- Que oração? Por favor, não venha zombar ou brincar com uma infeliz a quem nem Deus pode dar atenção.
- Engano seu, Deus compreendeu seu amor à vida, seu amor a um esposo admirável que possui e não quer deixar sozinho na terra. Por isso, acredite, não é mofa, nem brincadeira, digo-lhe o que posso dizer a Deus que testemunhe: seu desespero e sua revolta, até uma blasfêmia que lhe escape da boca, nas circunstâncias em que se encontra, são a única oração de que é capaz no momento.
Ela abriu os olhos, fitou-me curiosa e começou a falar. Disse-me mais uns ingênuos elogios e por fim: - Quero fazer-lhe um pedido.
- Que pedido?
- Não ser perturbe. É muito simples. Tenha pena de seu marido. Ele está arrasado pelo fato de sua explicável revolta, explicável, mas não justa, ter fechado os olhos e não querer sequer olhar para ele que a ama sem medida.
Foi o bastante para ver rolarem pelas faces grossas lágrimas.
Não perdi tempo. As lágrimas foram acompanhadas de um leve sorriso e da indagação: - Não quer pedir mais nada?
- Eu mesmo não, mas tenho comigo a Hóstia consagrada; quer que volte com ela ao Sacrário ou deseja recebê-la?
A face dela iluminou-se e eu senti que a montanha estava removida.
Disse-me sem mais rodeios: - Eu quero os Sacramentos e aceito a vontade de Deus, aceito a própria morte.
- Dar-lhe-ei a absolvição, sem mais nada. Não preciso sequer ouvir-lhe um só pecado. Deus a perdoa de tudo. Arrependa-se de coração.
- Meu maior pecado não existe, o senhor o transformou em oração.
Absolvi-a diante do esposo aliviado e de Celina que rezava baixinho. Dei-lhe o Viático e a ungi. A paz voltou àqueles corações.
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DELGADO, José de Medeiros. Pedaços de mim mesmo. Fortaleza, 1973.
Bispo de Caicó (1941 a 1951), Arcebispo de São Luís do Maranhão (1951 a 1963) e Arcebispo de Fortaleza (1963 a 1973).
Bela crônica, enviada pelo historiador,
Padre Gleiber Dantas de Melo, da Diocese de Caicó (RN)
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