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Em 25 anos, o Museu de Arte Religiosa Contemporânea não se esquivou dos riscos que supõe a arte religiosa

Exibições do MOCRA destacaram a arte sem se desvencilhar dos significados religiosos, e essa é uma lição aprendida pelos museus de hoje.

Michael Tracy,
Michael Tracy, "Tríptico: Décima Primeira, Décima Segunda e Décima Terceira Estação da Cruz para a América Latina - La Pasin", acrílico sobre lona encerado sobre madeira com vidro, cerâmica e mídia mista, com corona de estanho, 1981-1988. (Coleção MOCRA)

Por Menachem Wecker*
Ainda me lembro de estar na frente do enorme tríptico de Michael Tracy em uma visita de fevereiro de 2015 ao Museu de Arte Religiosa Contemporânea da Universidade de St. Louis.
De longe, a superfície corroída da poderosa obra poderia ser confundida com uma escultura de Anselm Kiefer, e a obra de Tracy corajosamente sustentada na enorme galeria, uma antiga capela com tetos altos de quase 10 metros. Tanto a sala quanto o tríptico lembram os espectadores de quão pequenos são, o que é uma coisa formidável na experiência da arte religiosa.
"Parece que a obra foi feita para o espaço", aponta o padre jesuíta Terrence Dempsey, historiador de arte e diretor do museu. "Suas dimensões se encaixam perfeitamente no espaço", disse em entrevista ao National Catholic Reporter.
Mas os ajustes perfeitos raramente são feitos com facilidade. Cinco pessoas tiveram que furar um buraco na parede para fazer a escultura de Tracy, que tem quase 10 metros de largura e um pouco mais de 7 metros de altura e pesa mais de uma tonelada, na galeria. Eles então tiveram que criar um novo muro para realizar o trabalho.
Felizmente, o artista posteriormente doou a obra. "É muito grande para mostrar em outros lugares", disse Dempsey.
O trabalho maciço continua olhando para o resto da galeria, mas agora é acolhida para a exposição "MOCRA: 25" (até 17 de fevereiro) por outro trabalho de Tracy. A exposição celebra o quarto de século do museu com as obras de 25 artistas. A cruz de Oscar Romero, feita por Tracy, foi exibida pela primeira vez na Bienal de Veneza em 1982 e desde então doada ao Museu de Arte Religiosa Contemporânea, acabou de sair de uma limpeza e restauração de sete meses. A escultura homenageia o santo bispo recém-canonizado, assassinado em 1980 em El Salvador.
Tracy viu uma foto em um tabloide do arcebispo assassinado enquanto visitava a Cidade do México em 1980 e ficou tão cativado com o que viu que estudou o contexto em torno do conflito que custou a vida a Romero. A cruz está em exibição pela primeira vez no Museu de Arte Religiosa Contemporânea, e é um dos muitos exemplos que atestam o compromisso de Dempsey em assumir riscos e pensar amplamente sobre o que a arte religiosa e espiritual pode ser.
Exposições anteriores examinaram o lado espiritual de Andy Warhol, a AIDS e o experimento da sífilis de Tuskegee. É claro que o museu, que Dempsey desenvolveu a partir de sua dissertação de pós-graduação da Theological Union, não é uma livraria religiosa ou uma loja de presentes da igreja que oferece lembranças espirituais.
Michael Tracy,
Michael Tracy, "Cruz do Bispo Oscar Romero, Mártir de El Salvador", acrílico sobre tecido de raiom sobre madeira, chifres, pontas de ferro, cabelo, tranças de tecido, tinta a óleo e hastes cobertas de seda, 1980-81. (Coleção MOCRA)

"Tentamos expandir a noção do que aborda e envolvem as dimensões religiosas", disse Dempsey. "Não é apenas a arte da loja de presentes que as pessoas, quando ouvem o nome" arte religiosa, pensam, reduzindo-a a estas pequenas estátuas e garrafas com santos nelas".
Quando Dempsey abriu o museu há 25 anos, um artista que convidou para apresentar suas obras disse: "É melhor você estar fazendo um bom trabalho lá, porque pode arruinar minha carreira e minha reputação".
Dempsey sabe que os artistas não querem ser rotulados de "religiosos" pelas razões erradas. "As pessoas vão pensar que você está fazendo cartões Hallmark ou aquelas coisas mais sentimentais", disse ele.
O teólogo e artista também realiza exposições na Universidade de St. Louis por convite da diretiva, por isso não é pego de surpresa. Mas ainda não recebeu o empurre que precisa, ele disse.
Outro artista da exposição é o falecido pintor cubano Juan González. Em dezembro de 1993, Dempsey viajou para Nova York para visitar seu amigo, que estava morrendo de AIDS. Demorou três tentativas para encontrar um dia em que González estivesse bem o suficiente para ter uma missa, e no terceiro dia, o moribundo surpreendeu Dempsey com sua energia repentina. González, que não conseguira sair da cama nos dias anteriores, moveu-se sozinho e estendeu a mão sobre um sofá para acender a luz.
Durante a missa e a subsequente unção, González tinha um sorriso radiante quando se sentou entre as duas filhas no melhor traje de domingo, que agora ficava muito grande para a sua estrutura encolhida. Quase uma dúzia de pessoas presentes chorou quando González abraçou cada um deles.
O artista cubano entrou em coma no dia seguinte e morreu três dias depois na véspera de Natal.
"Foi nesse ponto que pensei: isso é importante", disse Dempsey. "Existe uma conexão entre a dimensão religiosa e as pessoas que lidam com essa doença que ameaça a vida".
Dempsey incluiu o trabalho de González entre outros de cerca de 24 artistas na exposição de 1994 "Consagrações: O espiritual na arte no tempo da AIDS". A abertura, que incluiu Pilobolus e Alvin Ailey, foi a mais gloriosa dos 25 anos do museu, segundo o artista. "Havia muito amor e compaixão por lá", disse ele.
A mistura de inspiração artística de González, "Free Fall", que criou uma semana antes de sua morte, aparece na exibição atual e vem de sua série Diver. O trabalho, que faz referência a um afresco da Grécia antiga, retrata pessoas que caem no mar, parecidas com o personagem da mitologia Ícaro. "Os mergulhadores ou divers, como González os chama, neste trabalho final representam muitos amigos de Juan que morreram de complicações relacionadas à AIDS", observa a exposição.
Juan Gonzalez,
Juan Gonzalez, "Free Fall", 1993, da coleção de Teresa e Lawrence Katz. (Cortesia do MOCRA)

Três borboletas na superfície do oceano simbolizam a crença cristã na ressurreição, que González justapõe com uma referência clássica abaixo de uma antiga escultura de Eros adormecido. Esse sono está condenado a ser interrompido, no entanto. González cortou um triângulo do topo da moldura, criando um corte no meio do trabalho e sugerindo que "os efeitos da dor que sofremos persistem mesmo que possamos esperar que o espírito continue vivo", aponta também o museu nas mensagens da curadoria.
O espírito eterno é o que Dempsey estava buscando desde o começo. De fato, ele sentiu que algo estava acontecendo na década de 1980, então fez um arquivo de 800 artistas criando trabalhos religiosos e espirituais que conformariam seu doutorado.
Depois de concluir sua dissertação sobre "A Busca do Espírito: O Reaparecimento de Preocupações Espirituais e Religiosas na Arte Americana da década de 1980", foi para a Universidade de St. Louis. Lá, um jesuíta idoso, que na época dirigiu uma casa histórica no campus que exibia artes decorativas, recomendou que Dempsey pedisse uma nova capela que fazia parte de uma grande residência jesuíta construída em 1952. "Ela tem esse tipo de arta da escola de Bauhaus", disse Dempsey.
O número de jesuítas que estudam para o sacerdócio no local havia declinado de 250 em meados da década de 1950 para apenas 25 em 1989, de modo que os jesuítas venderam o prédio para a universidade e mudaram-se para os quartos mais confortáveis. Em 1990, o prédio era uma residência de estudantes leigos, mas ninguém sabia o que fazer com a capela. Dempsey propôs transformá-lo em um museu de arte inter-religiosa.
Algumas das fraternidades queriam transformá-lo em um salão de reuniões da fraternidade. "De repente, minha proposta chegou ao topo", disse Dempsey.
Ir. Helen David Brancato, Ir. Helen David Brancato, "Crucificação - Haiti", acrílico e colagem sobre madeira, 1999 (coleção MOCRA / Jeffrey Vaughn)

Desde a abertura do Museu de Arte Religiosa Contemporânea, Dempsey e o assistente de direção David Brinker já exibiram mais de 55 exposições de cerca de 230 artistas, a maioria americanos, mas também alguns vindos da Austrália, França e Alemanha. "Como em qualquer projeto, o que você acha que vai acontecer no começo de repente fica muito expansivo", disse Dempsey.
Tendo amado a companhia de dança Alvin Ailey desde seus tempos de pós-graduação, quando se apresentou como voluntário no Zellerbach Hall da Universidade da Califórnia em Berkeley e assistiu à dança de Ailey, Dempsey mostrou "Corpo e Alma: O Teatro de Dança Americano Alvin Ailey" em 1993.
"O que eu queria fazer com isso era mostrar que este pequeno museu em St. Louis poderia se conectar com uma das principais figuras da coreografia do mundo, Alvin Ailey", apontou Dempsey. "Tivemos cantores gospel aqui para isso. Foi realmente um ‘vamos ver como podemos expandi-lo’".
Ele assim o fez, expandiu sua obra, com o que acreditava que era o único museu inter-religioso de arte contemporânea em todo o mundo, e outros notaram isso. O Museu de Arte Religiosa Contemporânea foi uma das instituições que o Museu de Arte Bíblica de Nova York buscou para se inspirar, disse a ex-diretora Ena Heller, que atualmente dirige o Museu de Belas Artes Rollins College Cornell em Winter Park, Flórida (Agora o Museu de Arte Bíblica de Nova York desde que foi fechado o anterior).
Dempsey e o Museu de Arte Religiosa Contemporânea contribuíram para uma mudança no diálogo sobre o lugar da religião na arte, particularmente na arte contemporânea, de acordo com Heller.
"O MOCRA preencheu um vazio na paisagem dos museus quando abriu pela primeira vez e ofereceu um modelo - mostrando a arte religiosa na arte contemporânea – iniciativa que já foi adotada por outras instituições e pesquisadores", disse ela. "Suas exibições destacaram a arte sem se desvencilhar dos significados religiosos, e essa é uma lição aprendida para os museus de hoje".
 Dempsey, por sua vez, permanece humilde sobre suas realizações. "Até aí tudo bem", fala o artista. "Depois de um quarto de século, ainda não nos fecharam".

National Catholic Reporter - Tradução: Ramón Lara
*Menachem Wecker é repórter freelancer em Washington, D.C.

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