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Um continente e sua escrita

Ao contrário do que imaginamos, a história da escrita na África estende suas raízes até tempos bem mais remotos.

Estado da Arte
Exemplo do sistema nsibidi.

por Adriano Moraes Migliavacca

No artigo “Perpetuação e Ruptura: a literatura de Chinua Achebe”, sobre o conflito de alguns escritores africanos modernos com os estereótipos que produziam dos africanos certos autores europeus, acabei cometendo uma gafe e escrevendo “Antes que os próprios africanos começassem a transpor seu mundo para o papel, diversos escritores europeus ambientaram muitas de suas obras na África”. Referia-me aos africanos de povos colonizados pelos europeus, como os iorubás ou os igbos, que vieram a conhecer a língua escrita nesse processo histórico. No entanto, a frase dá a ideia de que a língua escrita era desconhecida de todos os povos da África subsaariana, o que está bem longe da verdade. A história da escrita na África estende suas raízes até tempos bem mais antigos.
Em primeiro lugar, a afirmação de que os povos autóctones da África subsaariana nunca inventaram formas escritas não é inteiramente verdadeira. Há, nos arcabouços culturais dos povos africanos, uma verdadeira riqueza de sistemas gráficos de signos e símbolos de diversas naturezas. Pesquisadores da arte rupestre encontram na África o continente com o maior número de pinturas em cavernas no mundo, seus estilos variando consideravelmente. Os arqueólogos Emmanuel Anati, Henri Lohte, Henri Breuil e Victor Ellenberger demonstraram que a arte rupestre de fato se constitui em uma forma de escrita. Anati defende que alguns dos pictogramas são, na verdade, ideogramas, apontando para um código universal. Nesses sinais gráficos, pode-se traçar o desenvolvimento do pensamento dos povoados humanos que os produziram, contendo mitos e lendas, os quais guardam grande parte do conteúdo moral e intelectual da sociedade.
Em povos como os dogons, símbolos gráficos são usados com finalidade mnemônica: permitem o registro e, portanto, a retomada da informação, desempenhando uma das funções da escrita, apesar de não poderem ser usados para registrar a literatura de seu povo, que permanece no âmbito oral. Os signos gravados em pedra, árvore, ou mesmo na pele humana, são usados para recordar certas fórmulas mágicas, cantigas, orações e, muitas vezes, assuntos de conversas e debates. Particularmente bem elaborado é o sistema de signos gráficos conhecido como nsibidi, contendo diversos símbolos de valor concreto e abstrato. Trata-se de um sistema originário de povos ecóis, efiks e igbos do sudeste da Nigéria. O nsibidi foi usado durante muito tempo tanto no nível exotérico, em que cobria de sentidos roupas, tecidos, cabaças e utensílios de ferro e madeira; quanto esotérico, em que fornecia uma linguagem reservada aos cultos da sociedade secreta Ekpe. Cruzando o Atlântico, veio a dar origem, em Cuba, ao sistema anaforuana, utilizado pela sociedade secreta Abakua (um desdobramento cubano da Ekpe), e aos elegantes símbolos veves do vodu haitiano. Vale ainda lembrar os símbolos conceituais adinkra dos povos akans e o tambor dúndún dos iorubás que, com um complicado sistema de couros, é capaz de reproduzir as tonalidades da fala humana, sendo possível pronunciar frases inteiras no instrumento que são perfeitamente reconhecidas e compreendidas pelos ouvintes sem o auxílio da linguagem verbal.
a afirmação de que os povos autóctones da África subsaariana nunca inventaram formas escritas não é inteiramente verdadeira
Mas há também instâncias em que povos africanos adotaram sistemas de escrita estrangeiros e desenvolveram longas tradições literárias neles. O exemplo mais antigo talvez seja o da Etiópia. A chegada do cristianismo ao país intensificou a escrita no idioma ge’ez, cujos primeiros manuscritos datam de por volta dos séculos V e VI. O exemplo mais antigo da escrita em ge’ez se encontra, no entanto, nas inscrições do obelisco Hawuti, anterior ao cristianismo, que celebrava, segundo investigações arqueológicas, os deuses da lua e do sol. A partir da chegada do cristianismo, no entanto, o ge’ez se tornou um idioma essencialmente litúrgico, e a poesia produzida nele tinha a mesma natureza. Após deixar de ser falado, seguiu sendo utilizado como língua religiosa na Igreja Ortodoxa Etíope. O mais recente amárico, hoje língua oficial da Etiópia, conta com uma literatura crescente em diversos gêneros e âmbitos, para além do religioso. O alfabeto em que se escrevem ge’ez e amárico é de origem semítica.
Astronomia dogon.

Outra extensa e complexa tradição de literatura escrita africana se originou da islamização de povos como os suaílis da Tanzânia e os hauçás do norte da Nigéria. Esses são povos que, com a chegada dos muçulmanos e a adoção da nova fé, aprenderam a língua de sua religião e o sistema de escrita associado com ela. No entanto, além da escrita em árabe, também vicejou o uso do sistema gráfico árabe para o registro de peça épicas, líricas e homiléticas nos idiomas africanos. Novas tradições literárias surgiram em que as formas métricas e composicionais e o sistema de escrita passam a acomodar o lirismo e a sonoridade das línguas africanas.
Os suaílis, povo navegador, cuja poesia abunda em metáforas marítimas, receberam exatamente pelo mar influências persas, indianas e árabes. Desses três, foi o último povo que maior impacto teve em sua cultura. Tamanha foi tal influência que por vezes os suaílis são referidos como “os árabes da costa leste africana”, não sendo poucos os que se consideram árabes. Sua poesia é de inspiração islâmica, grande parte dela com sentido moral, educativo e espiritual e frequentemente suas peças são compostas por ocasião de casamentos ou outras solenidades. O pesquisador e tradutor Lyndon Harris lembra o caso de um conhecido poema de composição relativamente recente, em 1957, por Ali Yusuf Abubakar, de Lamu, dedicado a uma sobrinha que ganhara uma bolsa de estudos para uma universidade indiana. Nele, o poeta insiste para que a jovem não abandone a prática de sua religião e não se distancie de sua espiritualidade.
Mas há também instâncias em que povos africanos adotaram sistemas de escrita estrangeiros e desenvolveram longas tradições literárias neles
Curioso é também o caso, apresentado por Harris, dos irmãos Saiyid, árabes de nascença que, ao se estabelecerem em terras suaíli, adotaram a língua do local como língua literária, contribuindo com o desenvolvimento de sua literatura por meio de formas de versificação árabes introduzidas por eles, baseando-se em obras didáticas e religiosas árabes que vieram a ser adaptadas para o suaíli. Há, no entanto, um tipo de poesia mais próxima das raízes bantas do povo suaíli: a épica dos utendi, longos poemas narrativos que contam embates e fatos históricos. Esses poemas têm o detalhe requintado de sua introdução, em que frequentemente o poeta pede a um filho que busque no mercado, para sua composição, papel e tinta, com as orientações de quais lojas devem ser preferidas para cada produto, descrições delicadas do tipo de papel adequado para a escrita, dos cuidados especiais com a tinta para que, ao tingir o papel, tenha a luminosidade exigida pela história a contar, a forma como, ao anotar o que lhe dita o pai, o filho deve escolher os devidos caracteres árabes, que são aqui chamados por seus nomes. Talvez possamos ouvir aí um eco da poesia tradicional africana, que, em muitos casos, se caracteriza por poetizar com elementos aparentemente simples. No século XIX, elementos de antigos mitos e rituais bantos também vieram a fazer parte dessa literatura. E, no XX, temos a penetração do alfabeto romano entre os suaíli, que veio a se fazer presente principalmente na poesia de cunho secular, enquanto na religiosa segue-se preferindo os caracteres árabes. Uma intersecção dessas duas tradições pode ser encontrada na obra do moderno poeta e humanista Shaaban Robert, um dos grandes mestres da língua suaíli.
Da mesma forma vemos na poesia hauçá a presença da tradição islâmica em versos que exaltam a figura do profeta Maomé e seus ensinamentos. Essa tradição escrita de matriz árabe, ou literatura afro-árabe, é considerada por Abiola Irele a literatura clássica da África, tendo efetuado uma ligação entre a África subsaariana e a do norte, e provido modelos inclusive para autores africanos francófonos modernos como Yambo Ouologuem, Amadou Hampâté Bâ e Cheikh Hamidou Kane, estes últimos de inspiração islâmica. A chegada do alfabeto romano com os ocidentais é, portanto, um episódio da história da escrita na África, que tem origens muito mais antigas.
Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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