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Homens e mulheres fantasiados participam de desfile de Carnaval nos anos 1920 

Em entrevista ao G1, o professor universitário paraibano relembrou de sua infância em Pedra Lavrada e comentou sobre seu passado na União Soviética.


Por André Resende, G1 PB — João Pessoa

 
Paulo Bezerra, paraibano de Pedra Lavrada, é o principal tradutor brasileiro dos clássicos da literatura russa — Foto: Rizemberg Felipe/Jornal da Paraíba/Arquivo
Paulo Bezerra, paraibano de Pedra Lavrada, é o principal tradutor brasileiro dos clássicos da literatura russa — Foto: Rizemberg Felipe/Jornal da Paraíba/Arquivo
 
O semiárido da Paraíba nada tem de São Petersburgo. Mas assim como a fria cidade russa, implica uma condição de vida peculiar aos seus habitantes por seu clima extremo. Na aridez, no solo seco da caatinga e no povo essencialmente camponês, Pedra Lavrada, cidade a 230 km de João Pessoa, é o típico cenário em que a necessidade da sobrevivência humana caberia uma adaptação de Crime e Castigo com um clima tropical.
Se não foi palco para o surgimento de Raskolnikov, Pedra Lavrada ficou conhecida como a terra em que nasceu e cresceu o responsável por popularizar o personagem no Brasil: Paulo Bezerra, paraibano de 78 anos considerado principal tradutor brasileiro dos grandes clássicos da literatura da Rússia, dentre eles livros de autoria de Dostoiévski e Bakhtin.
Ao longo de sua carreira como tradutor, são mais de 50 obras literárias da Rússia traduzidas para o português brasileiro em várias editoras. Entre a infância no semiárido paraibano e as traduções quando mais velho, Paulo Bezerra lembra que sua jornada teve escalas em João Pessoa, nas cidades de Atibaia e Guarulhos, em São Paulo, e outra em Moscou, capital da Rússia, onde viveu por boa parte da juventude.
Foi na sua estadia na Rússia que Paulo Bezerra aprendeu a falar russo fluentemente e dominar o alfabeto cirílico. “Não tive nenhum problema com o clima russo: minha adaptação foi surpreendentemente rápida e fácil. Quanto à língua, ao chegar lá eu dominava o alfabeto e algumas expressões como bom dia, boa tarde, e mais algumas palavras suficientes para começar a balbuciar um princípio de comunicação”, conta.
No primeiro semestre morando na Rússia, em 1963, Paulo Bezerra já conseguia se comunicar em russo, ler jornais e revistas. Até seu retorno ao Brasil, o paraibano teve contato com a arte e a cultura soviética, na época, sendo o teatro a que ele confessa ter se apaixonado com mais intensidade.
 
“Tudo aquilo, somado à tomada gradual de conhecimento da riquíssima história, da poesia e da prosa, da pintura, assim como de outras formas de convívio com a vida e a cultura da Rússia, foi-se enraizando em mim de forma natural, criando, sem que eu me apercebesse, uma espécie de segunda alma, a tal ponto que hoje, mesmo quando não estou traduzindo, raramente passo um dia sem ler alguma coisa em russo”, relembra Paulo.
 
Pedra Lavrada fica na região do Cariri da Paraíba — Foto: Reprodução/TV Paraíba
Pedra Lavrada fica na região do Cariri da Paraíba — Foto: Reprodução/TV Paraíba

Mas se engana quem acredita que a partida de Paulo Bezerra com destino à Rússia, na época dos anos de 1960 ainda União Soviética, se deu circunstancialmente. Após tentar seguir carreira militar em Natal e fracassar, e trabalhar em lojas em João Pessoa, enquanto jovem, Paulo foi morar com seu irmão em São Paulo. Primeiro em Atibaia, onde seguiu empregado no comércio, depois em Guarulhos.
Somente após passar a morar na região metropolitana de São Paulo, que Paulo Bezerra entendeu que precisava encontrar um emprego que desse mais estabilidade. O paraibano fez um curso de solda elétrica e a oxigênio. Pouco depois empregado em uma fábrica como soldador. Paulo seguiu estudando e concluiu o curso de desenho mecânico. A indústria e as relações pessoais no trabalho abriram um novo caminho àquela altura em que o Brasil, em meados de 1960, entrava em uma ditadura civil-militar: o movimento sindical.
 
“Na indústria me envolvi com o movimento sindical e com o Partido Comunista Brasileiro, no qual militaria até meados dos anos 70, do qual me afastaria por absoluta descrença em seus objetivos. Nunca mais militei em nenhum partido”, relata.
E foi o movimento sindical e o Partido Comunista do Brasil que enviaram Paulo Bezerra, pouco antes da tomada de poder por parte dos militares, rumo à União Soviética. Atualmente, o tradutor paraibano explica, após as seguidas desilusões, que tem como único ideal político a social democracia escandinava.
O passado comunista e sua técnica para traduzir as obras de Dostoiévski despertou críticas de Olavo de Carvalho, considerado um dos intelectuais conselheiros do presidente da república Jair Bolsonaro (PSL). O escritor brasileiro, que atualmente mora nos EUA, reclamou do uso de regionalismo nas traduções de Paulo. O paraibano rechaça as críticas. Para ele, é natural o uso de obras e descrições em sua língua mãe na hora de traduzir.
Paulo Bezerra conta que um desses casos de suporte nos clássicos regionalistas foi a descrição da natureza feita pelo também paraibano José Lins do Rêgo. “Foi útil em algumas passagens da tradução, não por semelhança das naturezas russa e paraibana, mas pela técnica da recriação da natureza. Aliás, costumo reler nossos clássicos quando traduzo. Por exemplo, quando Dostoiévski escreve parágrafos longos às vezes releio Alencar, quando faz descrições sucintas e secas, releio Graciliano”, lembra.
 
Paulo Bezerra é referência na tradução das obras de literatura russa para o português — Foto: Reprodução/Youtube
Paulo Bezerra é referência na tradução das obras de literatura russa para o português — Foto: Reprodução/Youtube

Sobre as críticas, o paraibano explica que Olavo de Carvalho “está na moda”. Considera-o um bom escritor, um homem inteligente, autodidata. “É um pensador da extrema direita, tem uma obra fiel a esse pensamento. É um direito seu, que respeito, é inquestionável, pois felizmente não vivemos sob o domínio do pensamento único, embora se observe uma tendência do novo ministro da educação a implantá-lo no MEC”, completa.
Em relação aos elogios que recebeu de Boris Schneiderman - falante nativo do russo, doutor e autor de vários livros e mais de uma centena de artigos nessa área, pioneiro da tradução direta dessa língua para o português, fundador da cadeira de língua e literatura russa na USP -, Paulo Bezerra garante que não existe tradução perfeita e que todo tradutor comete algum tipo de erro, mas que ainda assim, as possíveis correções devem vir de especialistas, não de "diletantes", como o próprio se refere.
“O tradutor de texto original é um mediador entre o autor e o leitor de sua tradução, e esta é uma interação entre duas línguas, dois sistemas de códigos linguísticos, duas culturas e, sem nenhum exagero, duas subjetividades criadoras. O tradutor que suprime palavras de uma obra de ficção em prosa ou amaneira o estilo do autor, com a intenção de torná-lo mais palatável, a certo gosto comete a presunção de se achar superior a ele, a ponto de poder ‘corrigi-lo”, acrescenta.
 
Crime e Castigo, uma das principais obras de Dostoiévski, foi traduzido pelo paraibano Paulo Bezerra  — Foto: Manoel Alencar/Arquivo Pessoal
Crime e Castigo, uma das principais obras de Dostoiévski, foi traduzido pelo paraibano Paulo Bezerra — Foto: Manoel Alencar/Arquivo Pessoal

Morando no Rio de Janeiro, onde é professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, Paulo Bezerra retorna de tempos em tempos ao seu estado. Da Paraíba, muito ainda carrega, nas lembranças do menino de sítio em Pedra Lavrada e na escrita do tradutor, do doutor e professor que torna possível a união de mundos distintos, geográfica e climaticamente opostos. Um guia no percurso literário da Rússia campesina e pobre que tanto tem de hostilidade de clima e simplicidade de vida do interior nordestino.

G1 entrevista o tradutor Paulo Bezerra

G1 - Quais a principais lembranças suas da Paraíba, da sua infância em Pedra Lavrada ou da sua juventude?
Paulo Bezerra - Minhas melhores lembranças de Pedra Lavrada estão vinculadas à Favela, nome do sítio de meu avô paterno e meu Éden de criança, onde eu sempre passava minhas férias escolares e construía uma infinidade de sonhos. Também tenho gratas lembranças dos amigos de infância e adolescência – Pereira de Minervina, Ubaneide, Zé e Jurandir Guedes, Tinan Porto, Maribel, Valdecir e João de Solon Vasconcelos e suas irmãs, Dudu de Mariana, Dionísio Félix, Maristela de Egídio e tantos outros cujos nomes se esfumaram na poeira da memória. Cordel, Basto doido e o mamulengo. Saí definitivamente da Paraíba em 1958 mal completara dezoito anos. Mas não saí por trabalho sindical: na época eu não tinha a menor noção do que isso representava. Em 1954, aos 14 anos, concluíra o curso primário – o quinto ano, com a excelente e inesquecível professora Piedade Fernandes.
Meus contemporâneos, cujos pais tinham condições de pagar um colégio privado, enviavam seus filhos para ginásios em Bananeiras, Areias e outras cidades. Mas meu pai era ferreiro, trabalhava de sol a sol no calor da forja e batendo ferro para tirar a duras penas o sustento da família. Eu via meus colegas saírem para ginásios, mas nunca tive a mais leve sombra de inveja: tinha vontade, mas fora educado na compreensão de que cada um só faz o que pode. E eu não podia.
Trabalhava desde os dez anos catando minério nos aterros das minas, que em Pedra Lavrada eram chamados de “poagem”, palavra derivada de pó, que nem sequer está dicionarizada no Aurélio ou no Houaiss, mas atestam a grande riqueza expressiva da nossa língua. Entre os 14 e 15 anos trabalhei na farmácia de Zé Lins, onde aprendi, entre outras coisas, a aplicar injeção intramuscular. Mas eu acalentava sonhos, principalmente o de estudar, e percebia que em pedra Lavrada eu não tinha nenhuma chance.
G1 - No tempo em que você viveu na Rússia, quais foram as maiores dificuldades no país? Existe alguma semelhança entre a aridez paraibana e o frio russo? Na sua percepção, o clima afeta a cultura do lugar?
PB - Cheguei a Moscou no dia 19 de agosto de 1963, em pleno verão. Logo veio o outono, depois o inverno. Não tive nenhum problema com o clima russo: minha adaptação foi surpreendentemente rápida e fácil. Quanto à língua, ao chegar lá eu dominava o alfabeto e algumas expressões como bom dia, boa tarde, e mais algumas palavras suficientes para começar a balbuciar um princípio de comunicação. Com o dia a dia e o início do estudo da língua, meu aprendizado do russo foi muito rápido, tanto que ao término do primeiro semestre em Moscou eu me comunicava em russo, lia jornais e revistas. Como eu sempre gostei muito de cantar, cedo aprendi a cantar canções russas, fato que me ajudou muitíssimo na compreensão e na pronúncia da língua.
Findo o primeiro semestre, fui passar as férias de inverno numa colônia de férias para estudantes e lá fiz meu primeiro grupo de amigos em Moscou. A partir daí, passei sair com eles, a ir ao cinema, ao teatro, a shows, a partidas de futebol e até a frequentar as casas de alguns deles, em suma, começava a viver a vida, a língua e a cultura russa em seu dia a dia fora do ambiente fechado daquela escola. Quanto ao teatro, foi ele uma das minhas primeiras paixões na cultura russa. Eu fixava toda a atenção nos diálogos dos atores, muita coisa não entendia, é claro, mas a empatia com aquela linguagem foi fundamental para o meu convívio e minha empatia com a língua, questão fundamental para o aprendizado de uma língua estrangeira.
Quanto à semelhança entre a aridez paraibana e o frio russo, são fenômenos naturais tão diferentes que é difícil compará-los. Mas a aridez paraibana, em especial aquela ligada à seca, principalmente no Cariri e no Seridó, dá um profundo desânimo na gente pela sensação de falta de vida decorrente da falta de chuva, muito diferente do frio russo que sabemos ser passageiro e terminar com o degelo e sua extraordinária abundância de água e renovação da vida. O clima afeta, sem dúvida, a cultura do lugar e sobretudo o seu usufruto.
Basta observar a força tremenda da natureza local nas várias formas de arte como a pintura, na literatura em prosa e sobretudo em poesia, na música. Nos países de clima quente, os shows ao ar livre são uma marca característica do usufruto da cultura; nos de clima frio, o inverno é o tempo em que os teatros e salas de concerto ficam mais lotados. No Romantismo em geral e no brasileiro em particular a natureza não foi apenas leitmotiv [motivo condutor] ; foi também personagem.
G1 - Como paraibano e leitor de obras regionalistas, existem pontos de convergências nas grandes obras russas e paraibanas?
PB - No tocante ao regionalismo como representação de costumes e tradições regionais numa linguagem marcada pelo colorido e pelos falares regionais, na literatura russa posso citar ao menos dois autores: Vladímir Arsêniev (1872-1930), geógrafo, etnógrafo e escritor russo, que dedicou grande parte de sua vida ao estudo do Extremo Oriente russo, o que resultou nos romances. Pelas paragens de Ussuriisk e Dersu Uzalá, obras marcadas por profundas características regionais. Dersu Uzalá, guia de Arsêniev em suas viagens e personagem que dá nome ao romance (que se tornou mundialmente famoso pelo belo filme nipo-soviético de 1975, dirigido por Akira Kurosawa) usa um regionalismo linguístico tão forte que é de difícil compreensão até para o falante do russo, apesar de Arsêniev ser russo. Gógol usa com tamanha intensidade as formas de expressão regionais que as línguas russa e ucraniana se misturam, provérbios ucranianos migram para o russo e vice-versa, criando para o tradutor uma dificuldade de dificílima superação. Isso ocorre com maior intensidade nas obras de cunho folclórico como Noite de Natal e Viy, que traduzi para o português e já teve várias reimpressões pela Editora 34.
Coincidentemente, ao traduzir essas obras eu estava dando um curso na pós-graduação sobre Usina e Fogo morto, e a descrição da natureza por Zé Lins me foi útil em algumas passagens da tradução, não por semelhança das naturezas russa e paraibana, mas pela técnica da recriação da natureza. Aliás, costumo reler nossos clássicos quando traduzo. Por exemplo, quando Dostoiévski escreve parágrafos longos às vezes releio Alencar, quando faz descrições sucintas e secas, releio Graciliano. O tradutor deve orientar-se nos mestres nacionais quando se depara com grandes dificuldades no processo tradutório, posto que sua língua de chegada é a língua nacional, e neste caso os mestres da escrita são a melhor referência.
Quanto a Augusto dos Anjos e possíveis paralelos com a literatura russa, é possível encontrar vários em Dostoiévski. Em Crime e Castigo, temos a tuberculose que ataca e mata Catierina Ivánovna Marmieládova, cujo sofrimento se mistura a um excepcional senso de dignidade em sua luta inglória contra um mundo socialmente injusto e em sua rebeldia contra um Deus, cujo perdão ela recusa na hora da morte. Em O Idiota, a personagem Hippolit transforma a angústia causada pela doença num libelo contra a sociedade e a indiferença dos homens perante o sofrimento dos despossuídos. Tolstói e Tchékhov foram outros autores que tomaram a tuberculose como tema em várias de suas obras, mas é em Dostoiévski que a angústia causada pela doença encontra paralelos com a angústia de Augusto dos Anjos, mas sem a exacerbação que o poeta paraibano imprime na representação da doença.
G1 - Recentemente o filósofo Olavo de Carvalho teceu críticas ao seu trabalho. Há críticas pelo fato de você ser nordestino e incluir uma linguagem regionalista nas traduções russas e também pela questão ideológica do seu passado. Como você avalia essas críticas ao seu trabalho?
Boris Schneiderman, falante nativo do russo, doutor e autor de vários livros e mais de uma centena de artigos nessa área, pioneiro da tradução direta dessa língua para o português, fundador da cadeira de língua e literatura russa na USP, grande mestre de todos nós tradutores de russo e maior conhecedor de Dostoiévski e das sinuosidades de sua linguagem, assim como da literatura e da cultura russa no Brasil, sempre me fez observações altamente valiosas sobre tradução, estimulou e elogiou minhas traduções, particularmente as de Dostoiévski. Num evento em homenagem ao Boris na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, quando compus a mesa com Antonio Candido, Lygia Fagundes Teles e o secretário de cultura do município de São Paulo, Candido me fez grandes elogios à minha tradução de Os irmãos Karamázov de Dostoiévski, destacando o uso criativo da língua portuguesa falada no Brasil e o emprego dos provérbios e formas idiomáticas tipicamente nossas.
Olavo de Carvalho não sabe russo, não tem formação específica na área de letras ou filologia, logo, não é pessoa competente para julgar uma tradução direta do original russo. Comparadas às dos dois grandes mestres acima mencionados, suas opiniões sobre minhas traduções e outras traduções diretas do original russo têm valor zero. Ele dá aulas sobre Dostoiévski nas redes sociais. Mas se Dostoiévski fosse aquela coisa pobre e linear que ele apresenta, ninguém o leria.
Olavo prefere as traduções indiretas, e recomenda a antiga edição das obras (quase) completas de Dostoiévski, publicada pela Livraria Editora José Olympio e traduzidas do francês. Essa iniciativa da José Olympio foi um grande e importante empreendimento editorial, que muito contribuiu para a divulgação da obra do gênio russo entre nós, e seus tradutores merecem nosso aplauso e nossa admiração. Contudo, são traduções indiretas com muitos erros de interpretação do original, erros esses que não podem ser atribuídos aos tradutores brasileiros, mas aos franceses (que Boris Schneiderman considerava os piores tradutores de Dostoiévski na Europa).
O tradutor de texto original é um mediador entre o autor e o leitor de sua tradução, e esta é uma interação entre duas línguas, dois sistemas de códigos linguísticos, duas culturas e, sem nenhum exagero, duas subjetividades criadoras. Na tradução indireta, a mediação se dá entre dois tradutores, o autor é deslocado para a condição de fonte e o leitor só chega a ele pela mediação de um terceiro. Parafraseando Platão, o tradutor de texto indireto é um imitador de terceiro grau.
Em perfeita homologia entre o ser e o modo de representá-lo, Dostoiévski harmoniza personagens e linguagem, revestindo suas obras de uma contundente e nada convencional verossimilhança, só possível em realistas peculiares como ele. Pois bem, nas traduções tanto do francês quanto do inglês desaparecem as peculiaridades das falas das personagens dostoievskianas, ou seja, esfumaçam-se as próprias personagens como unidades caracterológicas, e temos um discurso linear, claro e elegante, bem ao gosto daquilo que Meschonnic chama de “mito francês da clareza”, coisa totalmente oposta a Dostoiévski. Demais, na obra dostoievskiana são frequentes repetições da mesma palavra pelo narrador e até mesmo por personagens e eu, por uma questão de respeito ético à palavra do outro, que considero inviolável, mantenho todas as repetições porque fazem parte de seu estilo. O tradutor que suprime palavras de uma obra de ficção em prosa ou amaneira o estilo do autor com a intenção de torna-lo mais palatável a certo gosto comete a presunção de se achar superior a ele a ponto de poder “corrigi-lo”.
Voltando à crítica de Olavo de Carvalho, não foi minha tradução de Os demônios que o incomodou, tanto que ele não menciona uma única passagem do texto. O que o incomodou foi o meu Posfácio, onde abordo a excepcional capacidade de Dostoiévski de ver a história por dentro do processo e suas eventuais consequências na posteridade imediata ou distante. Olavo de Carvalho está na moda. É um homem inteligente, autodidata, escreve bem. É um pensador da extrema direita, tem uma obra fiel a esse pensamento. É um direito seu, que respeito, é inquestionável, pois felizmente não vivemos sob o domínio do pensamento único, embora se observe uma tendência do novo ministro da educação a implantá-lo no MEC. Como estamos em início de governo, espero que essa tendência não se concretize e o MEC respeite a natureza plural do pensamento, pois ela decorre da sociedade que é igualmente plural.
Dostoiévski foi um artista genial tanto no pensamento como nas formas de representação do homem, criou uma poética ímpar que o grande teórico e filósofo Mikhail Bakhtin chamou de polifonia. Deu voz aos representantes de todos os segmentos sociais, foi o romancista dos humilhados e ofendidos. Tudo isso bate de frente com o pensamento de extrema direita de Olavo de Carvalho. Repito, se Dostoiévski fosse aquela coisa linear e pobre que Olavo apresenta em suas análises nas redes sociais, ninguém o leria. Mas literatura é arte e cada um é livre para interpretá-la.
G1 - Tem lido algo da Paraíba? É possível vislumbrar uma nova leva de grandes autores paraibanos?
PB - Para ser franco, ultimamente tenho lido poucos autores paraibanos. Aldo Lopes, Marília Arnaud, Hildeberto Barbosa, a poesia do grupo Sanhauá, Linaldo Guedes…
G1 - Se, hipoteticamente, fosse possível eleger um livro paraibano para fazer uma versão para o russo, qual seria?
PB - Há tantos. Fogo Morto do mestre 'Zé Lins', O dia dos cachorros de Aldo Lopes de Araújo, Os cantos noturnos do coração de Marília Arnaud, só para ficar em alguns.

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