Pular para o conteúdo principal

Escritora portuguesa constrói alegoria sobre passado e presente do Brasil

Alexandra Lucas Coelho lança nesta quarta-feira em BH o livro 'Deus-dará', obra que mescla estilos e linguagens e cria um painel das contradições do país.
Alexandra Lucas Coelho, correspondente do jornal 'Público' e autora de 11 livros.
Alexandra Lucas Coelho, correspondente do jornal 'Público' e autora de 11 livros. (Rui Gaudêncio/Divulgação)

Por Pablo Pires Fernandes
Repórter Dom Total
Não foi por acaso que a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho deu a seu romance o título de Deus-dará. A expressão, como sabemos, quer dizer “à própria sorte”, “à ventura” ou até “sem previsão de futuro”. A origem do termo tem uma versão portuguesa e outra brasileira, mas ambas remetem à providência divina diante de alguma impossibilidade.
Quem sabe Deus possa explicar o Brasil. Talvez, nem Ele. Porém, a autora do romance reúne pistas preciosas sobre o caos que é, e sempre foi, este país. Em uma alegoria bíblica que remete à Gênesis e ao Apocalipse, a escritora radicada no Rio de Janeiro percorre os últimos 519 anos da história deste território, de suas tragédias, de suas belezas e um tanto de sua crua realidade.
Sete – não é acaso – personagens cariocas são retratados ao longo de três anos, expondo suas vidas e sentimentos que, no romance, entretanto, vêm atrelados a um mosaico de digressões e referências históricas que se assemelham à assemblage.
A liberdade criativa, as associações, citações e as variações temporais de Deus-daráremetem às obras de Thomas Pynchon com pitadas do cinema de Glauber Rocha. A autora se coloca num lugar assumidamente “transatlântico” – como ela própria –, o que confere à narrativa um olhar desprovido de lugar, de pertencimento. A partir deste não lugar, ela proporciona uma importante lição sobre a formação do Brasil, tema tão caro aos intelectuais e acadêmicos brasileiros. Faz, entretanto, de modo singular, revelando as entranhas do racismo contra os negros, o genocídio indígena, a gana colonizadora, a perfídia das elites e tantos “jeitinhos nossos” que exalam morte e, num futuro próximo, algum cheiro de pólvora.
O Brasil dos povos originários, dos africanos escravizados, dos portugueses e tantos outros que aportaram neste território. A mistura caótica e apocalíptica que surgiu aqui. É disto que se trata Deus-dará, obra singular e importante de uma das mais representativas escritoras portuguesas da atualidade.
Alexandra Lucas Coelho tem percorrido o Brasil para lançar Deus-dará e, nesta quarta-feira (22), a autora autografa o livro em Belo Horizonte, na Quixote Livraria e Café, às 19h. O lançamento contará com a presença de Ailton Krenak, um dos maiores pensadores do país e voz fundamental da luta pelos direitos dos povos indígenas. Na quinta-feira (23), ela participa de debate na UFMG, no Auditório Professor Baesse, na Fafich, às 11h30, acompanhada do professor Sérgio Alcides (Fale).
Nos últimos dias, ela visitou diferentes lugares em Minas Gerais, incluindo a Serra do Cipó, aldeias indígenas e incluiu uma passagem por Barão de Cocais para ver de perto a ferida aberta nas montanhas de Minas. Nesta entrevista exclusiva ao Dom Total, a escritora fala sobre o livro e um pouco de sua visão do Brasil.
Em Deus-dará, há uma mistura de gêneros, vozes, linguagens. Como foi o processo de escrita, sobretudo a mistura entre ficção e história?
Vejo o romance não como um gênero mas como um transgênero, um terreiro para onde tudo pode confluir, modos narrativos e não narrativos, poema visual, micro-ensaio, canções, mensagens de celular, e-mails, gravuras, fotografias, experiências com a tipografia, esboços de roteiro. Tudo o que o texto for pedindo para a sua necessidade, e que possa tornar vivo o que você quer criar. Não uso a palavra ficção. Não gosto dela, é fraca. Ficção quer parecer como, tenta ser verosímil. Não quero criar para parecer como. Quero que seja. Que passe a existir. Não me interessa a verossimilhança, interessa-me a verdade. A vida é totalmente inverossímil. Se o que você cria é potente, isso se torna vivo, real. É o real. A história entra no romance como outras linguagens e meios entram. Há uma linha no presente, horizontal, o Rio de Janeiro agora, o Brasil agora. E nessa linha se intersectam outras, curvas, verticais. A história é o texto escavando para dentro e para trás, até às raízes antes de 1500, que são também a história do lugar de onde venho. Esse livro foi evoluindo para ser o que precisava de ser, e o que eu precisava escrever. Partiu de uma necessidade, tentar retribuir um pouco do que o Brasil me deu, nos anos em que morei aqui, e gerou as suas necessidades, cada vez mais fundo, da minha própria origem, e onde essa origem se cruza com o Brasil. Não era possível fazer um retrato do Brasil agora sem escavar até à riqueza indígena que havia aqui, à extinção de tantos povos, à escravidão de 6 milhões de pessoas que Portugal tirou de África para com cerca de 4 milhões colonizar o Brasil.
Como surgiu essa alegoria bíblica no livro?
Veio naturalmente, quando eu estava dando a volta à Lagoa Rodrigo de Freitas. O Rio, morros, Redentor, natureza primordial parece que giram em torno de nós, um movimento circular entre génesis e apocalipse, que parece corresponder ao da própria vida na cidade, e brasileira. A vida no Brasil tem a presença constante de muitos deuses no cotidiano das pessoas, ao mesmo tempo que é marcada por um abandono de milhões, gente que a todo o momento pode morrer, da enchente, da bala perdida, da violência da polícia, da milícia, do tráfico, do descaso do estado. Então, essa ideia veio naturalmente, um romance que se chamaria Deus-dará, que se passaria em sete dias, como nos livros do gênesis e do apocalipse. A ideia de apocalipse já está ali, antecâmara de tudo o que depois foi acontecendo, e está a acontecer agora, nesse momento, o maior desafio da democracia brasileira. Quando um verdadeiro inimigo do Brasil, e do mundo, as forças mais nefastas, se sentam no governo.
A presença de histórias de índios, negros e portugueses se entrelaçando no romance é notável. Como vê a contribuição de cada um desses povos na formação do Brasil?
Os indígenas estavam aqui milhares de anos antes de 1500, e foram em boa parte exterminados, pela doença, pelo abuso e pelas armas. Um apocalipse. Línguas, culturas, cosmogonias para sempre extintas. Apesar da resistência, que também teve. Na verdade, os indígenas estão resistindo ao apocalipse desde 1500. No romance, tento recriar o momento do primeiro encontro, a partir dos dados históricos que temos, da carta de Caminha, de vestígios arqueológicos. Essa utopia de um encontro entre mundos acaba ali, no momento em que acontece. No momento seguinte, os índios começam a morrer. Depois os portugueses colonizaram o Brasil com 4 milhões de africanos, dos 6 milhões que tiraram de África. Mistura fundada na violência, na violação de incontáveis mulheres, indígenas e africanas. Muitas narrativas alternativas que não estão no centro da história mais canónica.
O Brasil exposto em sua obra é cheio de contradições, como o país. Como vê a história passada e presente?
O Brasil se funda nessa violência original, nesse primeiro apocalipse, e na exploração continuada. Essas são as bases, as raízes, e estão vivas até hoje. É essencial ter esse lastro da história para ler o presente. E ele será decisivo para o futuro que queremos construir, juntos. Para os descendentes vivos de tudo isto.
Como foi a experiência de viajar pelo Brasil?
Esta edição brasileira de Deus-dará sai agora no Brasil, quase três anos depois da portuguesa. Para mim esse livro não estaria terminado sem isso, a chegada ao Brasil. Por isso, e por tudo o que o Brasil vive, encarei esse lançamento como um momento para estar junto de quem mais precisa, das universidades públicas que estão sendo atacadas, das livrarias independentes, sufocadas, das periferias, do interior, da terra indígena. No caso da terra indígena, há ainda uma necessidade simbólica, de devolver este livro ao começo. De fazer um tributo às lutas dos povos originais nestes 519 anos, que se cruzam com a história do lugar de onde venho. Quis então fazer esta viagem até à terra indígena krenak como uma peregrinação, um ritual. Ali fui recebida por Ailton Krenak e sua generosa família. Acabo de voltar, fazendo a viagem de trem até Barão de Cocais, onde centenas de pessoas são depois transferidas para ônibus, por causa da ameaça de rompimento da barragem. Uma viagem apocalíptica, passando por povoações fantasma, atravessando o medo e a incerteza, cruzando constantes vagões de minério, pilhas de madeiras cortadas. O saque do Brasil, à custa de crimes continuados. Não compreendo como os responsáveis da Vale não estão presos. Não compreendo como é possível atentar desta forma contra a vida de povos indígenas, que perderam o seu rio, a tantas populações ribeirinhas, a tanta natureza, animais e pessoas. Um apocalipse contínuo. Há que resistir sem trégua. É o nosso futuro, todos juntos.
         


DEUS-DARÁ 
De Alexandra Lucas Coelho
Bazar do Tempo
440 páginas
R$ 65
LANÇAMENTO:Quarta-feira (22), às 19h. Na Quixote Livraria e Café (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte). Com a presença da autora e de Ailton Krenak.

DEBATE: 
Quinta-feira (23), às 11h30. No Auditório Professor Baesse, Fafich, 4º andar. (Av Antônio Carlos, 6.627, Câmpus Pampulha). Com apresentação do professor Sérgio Alcides. Entrada franca. 

Redação Dom Total

Comentários