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O império da mentira

A mentira tem servido para atacar adversários, destruir reputações e ganhar eleições.
Inspirado no filme La La Land, grafite numa rua de Londres satiriza o fiasco do Brexit.
Inspirado no filme La La Land, grafite numa rua de Londres satiriza o fiasco do Brexit.

Por Marco Lacerda*
No que consiste a mentira? É lícito mentir? Existe alguma circunstância em que a mentira pode evitar um mal maior? A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós mesmos e que desejamos impor aos outros. Mentira é o nome dado às afirmações ou negações falsas ditas por alguém que sabe (ou suspeita) de tal falsidade e, na maioria das vezes, espera que seus ouvintes acreditem no que é dito. Trata-se de uma praga que vem de longe, desde a mentira de Judas Iscariotes selada com o beijo da traição a Jesus Cristo, até a avalanche de falsidades que hoje inundam as redes sociais.
Por isso e muito mais, a mentira é um dos pesadelos destes tempos de interação entre a política e as redes. Mais do que nunca, a mentira serve para atacar adversários, destruir reputações, agrupar e separar pessoas, formar comunidades, ganhar eleições e/ou manter-se no poder.
A mentira tornou-se um esporte em regiões do mundo como Rússia, Coreia do Norte, Oriente Médio, Brasil e entre extrema-direita e extrema-esquerda de todo o planeta. Sabe-se que a mentira foi a principal responsável pela vitória do Brexit, de Donald Trump e outros presidentes. Com frequência, a mídia internacional aponta a mentira como principal responsável pelo êxito de Jair Bolsonaro, embora Trump seja hors-concours em matéria de balelas quando aciona o seu tuíter.
Tudo isso, porém, fica pequeno se comparado ao Brexit, hoje considerado a maior mentira de todos os tempos, vendida ao eleitorado quando do referendo de 2016. Em meio a uma torrente de fake news e uma crise de refugiados que fez das migrações motivo de cólera política em toda a Europa, os britânicos votaram a favor da saída do Reino Unido do bloco europeu, por 52% a 48% dos votos.
Um pântano de mentiras e táticas fraudulentas levou o povo a acreditar que, livres das regras impostas pela União Europeia, os britânicos teriam uma vida melhor. Esses mesmos eleitores agora sabem que foram enganados pelas promessas da campanha em defesa da retirada, principalmente, a ideia de que o Reino Unido poderia manter o status de inserção e influência no plano europeu e mundial sem ter de se submeter à burocracia de uma entidade supranacional.
Outra grande fraude que entrou para a história diz respeito à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, um capítulo brutal da guerra ao terrorismo declarada pelo presidente George W. Bush, após os atentados de 11 de setembro de 2001. Em fevereiro de 2003, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, discursou no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Seis semanas antes do início da guerra, Powell passou 76 minutos tentando influenciar a opinião pública internacional a aprovar a guerra. Alegou que Saddam Hussein possuía armas biológicas e químicas de destruição maciça, que seu regime apoiava o terrorismo internacional e pretendia construir armas nucleares.
O discurso de Powell culminou numa acusação, apoiada por ilustrações detalhadas, de que o Iraque havia convertido uma frota de caminhões em laboratórios móveis de armas químicas e biológicas para fugir ao controle dos inspetores das Nações Unidas. Mais tarde, todas essas afirmações foram dadas como falsas. Em 2005, o próprio Colin Powell descreveu o discurso como uma mancha em sua carreira. O saldo dessa suposta guerra ao terror custou a vida de 500 mil pessoas, entre americanos e iraquianos.
O homem começou a mentir assim que se juntou em grupos, e nunca mais parou.
Joseph Goebbels: "Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade".
O presidente Jair Bolsonaro é um colecionador de mentiras. Durante a campanha eleitoral e nesses quase cinco meses de governo ele deu show de bola no assunto. Senão, vejamos:
- “Somos o país que mais preserva o meio ambiente”.
- “Onde você viu,  no mundo, uma ditadura entregar o governo de forma pacífica para a oposição? Só no Brasil. Então, não houve ditadura”.
- “O PT aprovou uma 'bolsa família' unicamente para travestis e transexuais”.
- “O português nem pisava na África. Eram os próprios negros que entregavam os escravos”.
- "O problema do Brasil é a classe política".
A última declaração, acima, beira o cinismo, já que a classe política foi o reduto de Bolsonaro nos últimos 30 anos, mas deixa pra lá...
Lula também tem um bom repertório de caraminholas deslavadas. Vale a pena lembrar uma delas. Da sala de interrogatório da Polícia Federal em Congonhas ao palanque na Avenida Paulista, a versão oficial do ex-presidente para estar entre os investigados na maior operação de combate à corrupção da história brasileira não muda uma vírgula. Segundo ela, Lula e seu partido seriam vítimas de uma perseguição seletiva (apesar da operação envolver 117 presos e 50 políticos investigados de seis diferentes partidos), destinada a acabar com o PT e prendê-lo. O motivo? Para Lula, trata-se de uma vingança por seu mandato ter tirado 36 milhões de pessoas da pobreza extrema e permitido aos mais pobres viajar de avião. Só há um problema com essa versão: ela é falsa, do começo ao fim.
Uma mentira é contada quando uma pessoa tem a intenção de enganar iludir ou ludibriar outra, fazendo-o deliberadamente. Ou seja, ao contrário de situações em que é esperado que a pessoa transmita falsas informações, como em um jogo de poker, na mentira a pessoa pode escolher entre mentir ou falar a verdade, sabendo a diferença entre as duas opções. “É mais fácil fazer as pessoas acreditarem numa grande mentira dita muitas vezes, do que numa pequena verdade dita apenas uma vez”, dizia o  ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels.
A mentira nasceu junto com a sociedade. O ser humano começou a mentir assim que se juntou em grupos, e nunca mais parou. Uma experiência da Universidade de Massachusetts mostrou que, quando duas pessoas se conhecem, cada uma conta em média três mentiras nos primeiros 10 minutos de conversa. E pessoas que compartilham a vida toda (cônjuges, parentes, amigos) também mentem entre si, às vezes de forma terrível. Todo mundo mente. Tem gente que mente para levar vantagem, conseguir o que quer. Alguns mentem para não contrariar ou magoar outras pessoas. Tem quem minta para parecer mais legal e ser aceito socialmente.
Existem infinitas maneiras de mentir, e elas nos acompanham o tempo todo. No caso do Brasil, até em canções de lirismo incontestável, como aquela obra-prima de Dorival Caymmi em que um dos versos diz assim: “Se a noite é de lua a vontade é contar mentira...”. A mentira está gravada no DNA desse estranho país que, por deboche, cunhou a expressão “Me engana que eu gosto”.
A mentira de Judas selada com o beijo da traição de Cristo, em tela de Caravaggio.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total.

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