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Overdose à moda da casa

No Brasil, uma potência do narcotráfico, morre-se pouco de overdose.


A maioria dos casos de overdose tem sido causada pela droga sintética K2 ou Spice.

A maioria dos casos de overdose tem sido causada pela droga sintética K2 ou Spice.
Por Marco Lacerda*
Overdose é o termos em inglês utilizado cientificamente para se denominar a exposição do organismo a grandes doses de uma substância química, seja ela um medicamento, uma droga ou outras substâncias. Tal exposição pode provocar a falência de órgãos vitais como coração e pulmões, sendo uma das principais causas de morte entre dependentes químicos.
A overdose pode ser acidental ou provocada, fatal ou não, sendo difícil estabelecer um critério para cada uma dessas situações. Na maioria dos casos, ela ocorre quando o usuário busca maiores efeitos, perdendo o controle das doses, encaminhando-se às vezes acidentalmente e outras vezes consciente do risco que corre para quadros que poderão levá-lo à morte.
Uma cena registrada recentemente no New Haven Green, um parque central localizado ao lado da Universidade de Yale, foi caótica. Bastava olhar as marcas deixadas pelas ambulâncias que invadiram o gramado para socorrer a avalanche de intoxicados pelo consumo de uma droga sintética cem vezes mais poderosa que a maconha. Até 76 casos de overdose foram contabilizados pelas autoridades em um dia, aos quais se somaram, horas depois, mais de vinte registros. É o mais recente exemplo da grave crise decorrente do uso de drogas que flagela os Estados Unidos e muitos países do mundo. As mortes por overdose são a principal causa de morte entre americanos com menos de 50 anos, matando mais do que HIV, violência armada ou acidentes de carro.
Carnificina entre as facções envolvidas no narcotráfico
No caso dos EUA, origem desse episódio foi a droga sintética K2 ou Spice. Rick Fontana, diretor de operações de emergência dessa cidade em Connecticut, explicou que foram contabilizados até 25 casos de overdose em um período de pouco mais de três horas. Houve momentos em que tiveram de atender até seis pessoas ao mesmo tempo e chegaram a interromper uma coletiva de imprensa para atender novas vítimas. “Muitos desmaiavam ao mesmo tempo”, comentou.
Em todo o mundo, as mortes causadas diretamente pelo uso de drogas lícitas e ilícitas aumentaram 60% entre 2000 e 2015, diz Relatório Mundial Sobre Drogas, lançado recentemente pela Organização das Nações Unidas. Desse número, medicamentos de prescrição derivados do ópio respondem por 76% de todas as mortes relacionadas a drogas.
O Brasil é um dos países com menos mortes por uso de drogas. Segundo pesquisas das Nações Unidas, o país aparece em 67º lugar num ranking em que a Islândia aparece em 1º. Nossa overdose é bem outra, gerada por estarmos no topo do ranking dos maiores traficantes de drogas do planeta. Esta posição de liderança, porém, causa muito mais mortes do que as registradas por overdose nos países do Primeiro Mundo, para os quais exportamos entorpecentes de todo tipo.
A carnificina em unidades prisionais do Norte do país, que nos primeiros seis dias de 2017 matou 93 encarcerados, escancarou a força do narcotráfico no Brasil. Nacionalmente, o negócio gira aproximadamente R$ 15,5 bilhões ao ano, de acordo com levantamento da Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados, realizado em agosto de 2016.
Brasil, um império da comercialização de drogas
A overdose pode levar à falência de órgãos vitais e à morte

Conforme os dados, a maconha deve movimentar, anualmente, R$ 6,68 bilhões. A cocaína gera outros R$ 4,69 bilhões; o crack, R$ 2,95 bilhões; e o ecstasy, R$ 1,189 bilhão. As cifras explicam porque a atividade gera tantas disputas entre facções criminosas como Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da Capital (PCC).
À frente da Colômbia, Equador, República Dominicana e Argentina, o Brasil foi o país mais frequentemente utilizado como base para envio de cocaína para a Europa, entre 2009 e 2014, segundo o Anuário das Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2016. No mesmo período, 51% do fornecimento de cocaína que chegou à África partiu também do Brasil.
Por ter proporções continentais, fiscalizar o narcotráfico no Brasil não é nem um pouco fácil. Este é um país que faz fronteira com 10 países, três dos quais são produtores de cocaína (Bolívia, Peru e Colômbia), fronteira com o Paraguai, que produz maconha e cocaína em menor quantidade.
A cocaína e a heroína colombianas que têm como destino a Europa passam pelo Brasil. Apenas o Porto de Santos transporta por ano 75 milhões de toneladas. Bolívia, Peru e Colômbia não possuem as plantas necessárias para produzir os produtos químicos (éter e acetona, entre outros) utilizados no refinamento da base de cocaína. Já o Brasil possui uma indústria química enorme e aqui é muito fácil montar uma empresa de comercialização de diversos produtos químicos sem a menor fiscalização. Isto foi um fator decisivo para atrair a atenção dos narcotraficantes e fazer do Brasil um lugar de processamento e exportação da droga.
Um negócio que movimenta U$S 320 bilhões ao ano
A droga consumida no Brasil não é a colombiana, muito pura e destinada a mercados com maior poder aquisitivo. Aqui se consome a maconha paraguaia e a cocaína oriunda da Bolívia. Estas drogas entram no país através de pequenos aviões e caminhões. O Brasil também é um provedor de novas drogas alternativas e constitui uma peça importante na engenharia internacional do narcotráfico.
O negócio das drogas, que envolve um em cada quatro adultos no mundo, movimenta cerca de U$S 320 bilhões ao ano, segundo a ONU. No Brasil, somente o Comando Vermelho e a Família do Norte, pivôs da crise atual, giram cerca de R$ 1 bilhão por ano, aponta o sociólogo e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Robson Sávio.
De acordo com o pesquisador, a diversificação de negócios com a qual o PCC se envolve para lavar o dinheiro da droga é tamanha, em ramos como transportadoras e mercado imobiliário, que torna-se impossível mensurar o volume dos negócios da facção paulista.
“Mundo da sombra, caverna escondida, onde a luz da vida foi quase apagada”.
O narcotráfico tem provocado carnificinas entre as facções criminosas do país

O negócio das drogas, que envolve um em cada quatro adultos no mundo, movimenta cerca de U$S 320 bilhões por ano, conforme a ONU. Diante dessa torrente de lucros gerados pelo narcotráfico, haverá, entre os integrantes dessas facções e milícias, algum resquício de culpa por saberem que estão exportando sofrimento e morte para o mundo? Certamente não, sobretudo pelo fato de saberem que quem compra seus produtos são países ricos nem um pouco preocupados com o futuro dos morros e das periferias mal vestidas da América Latrina.
Some-se a isso a comprovada promiscuidade entre o Estado (parlamentares, empresários, sistema financeiro) e o narcotráfico, o aumento da violência nas cidades e no campo e o aparelhamento estatal supostamente destinado ao combate às drogas. As trevas dessa realidade estão retratadas com clareza nos versos de Gilberto Gil:
O mundo da sombra, caverna escondida
Onde a luz da vida foi quase apagada
O mundo da sombra, região do escuro
Do coração duro, da alma abalada, abalada
Hoje eu canto a balada do lado sem luz
Subterrâneos gelados do eterno esperar
Pelo amor, pelo pão, pela libertação
Pela paz, pelo ar, pelo mar
Navegar, descobrir outro dia, outro sol.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total.

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