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A consciência feminina no século 19

'A véspera', clássico de Ivan Turguêniev, apresenta personagem singular ao abordar o ceticismo e o preconceito com as diferenças.
Detalhe de ‘Retrato de Ivan Turguêniev’, realizado pelo pintor russo Ilya Repin, também autor da pintura que ilustra a capa do livro
Detalhe de ‘Retrato de Ivan Turguêniev’, realizado pelo pintor russo Ilya Repin, também autor da pintura que ilustra a capa do livro (Domínio Público)

Por Jacques Fux*
Em outubro de 2013, um estudo em neurociência publicado pela prestigiosa revista Science mostrou que os participantes que liam mais “ficção literária” (em detrimento à literatura de “entretenimento” ou de “autoajuda”) desempenhavam um papel melhor nos testes que mediam as suas capacidades de percepção social e empatia. De acordo com o estudo, esses leitores desenvolveram uma eficiência maior na habilidade de compreender o que um outro ser humano estaria pensando e sentindo.
Para os autores do artigo, David Comer Kidd e Emanuele Castano, a literatura de “autoajuda” e “entretenimento” retrata situações pouco profundas e tem uma fórmula básica: conduzir os leitores por uma montanha-russa de emoções e experiências rasas. Porém, apesar de despertar sensações distintas, a densidade de seus personagens é pobre – são bastante consistentes e previsíveis –, confirmando as expectativas do leitor e não os possibilitando desenvolver habilidades como a empatia.
Já a “ficção literária”, pelo contrário, dá foco e atenção especial à psicologia, à densidade, dúvidas e incertezas de seus personagens e de seus pensamentos, reflexões e relacionamentos. “Muitas vezes as mentes desses personagens são retratadas vagamente, sem muitos detalhes, e somos obrigados a preencher as lacunas para entender suas intenções e motivações”, diz Kidd. Dessa forma, o leitor deve imaginar/ficcionalizar e se colocar no lugar dos personagens, sentido/vivendo suas angústias e intemperanças.
Não há dúvida que a densidade psicológica, a estrutura, o engendramento narrativo e os simulacros que o cânone da literatura russa nos oferece – na voz de Gogol, Pasternak, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Bulgákov Maiakóvski, Turgeniêv – é capaz de transformar seus leitores. Não ficamos impassíveis: sofremos as dores e recriamos as chagas morais e éticas de Raskólnikov; ficamos consternados e também amamos e odiamos os amores do Doutor Jivago; angustiados, viajamos pelas milhares de páginas das histórias e da complexidade dos personagens de uma Guerra e paz eternizados na cultura mundial.
Ivan Sergeiévich Turguêniev nasceu em 1818, em Oryol, a cerca de 500 quilômetros de Moscou. Amigo próximo de Flaubert, foi um escritor muito conhecido nos círculos literários da França e se tornou o primeiro escritor russo a ser cultuado no Ocidente em virtude da qualidade magistral de seus textos. Morreu em 1883 em Bougival, França, com 64 anos.
Turguêniev, mestre em construir personagens e diálogos filosóficos e impetuosos, autor do clássico Pais e filhos, talvez o grande livro sobre o niilismo, reaparece em A véspera, na bela tradução de Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova. O autor reconstrói uma história “real” – ele recebeu um caderno autobiográfico de uma jovem russa que tinha cometido uma “afronta” ao ter preterido o seu vizinho Karatiéiev por um jovem estudante da Bulgária.
Repleto de passagens que nos fazem refletir sobre temas caros ao autor – niilismo e o ceticismo – o livro ainda antecipa a situação da Rússia à “véspera” da desastrosa Guerra da Crimeia e também da emancipação dos servos, que data de 1861.
Talvez, a grande importância do livro esteja na “invenção” da personagem Elena. De acordo com crítico literário Pavel Vasilyevich Annenkov, o ineditismo de Turguêniev está na construção robusta dos gêneros de seus personagens: o masculino é visto como inteligente, porém com caráter fraco e sempre perdido; e o feminino é representado na figura de heroínas fortes, corajosas e sedutoras, como é o caso de Natalia Lasunskaya, do romance Rúdin, Elena Stakhova, de A véspera, ou Liza Kalitina, do Um ninho de nobres.
Elena, ao se ver encantada/apaixonada pelo sonhador revolucionário búlgaro, enfrenta a fúria de sua família – seu pai havia escolhido um outro noivo para ela –, corrompe a tradição russa de se casar com pessoas da mesma cultura e combate a posição da mulher em um tempo em que nada disso era considerado. Nós, leitores, nos debruçamos empaticamente sobre a história e nos solidarizamos com Elena, que mostra uma posição firme, esclarecida e certa de que precisa questionar e subverter os então “direitos” e deveres da mulher.
Ler Turguêniev é vislumbrar veredas que transformam. É tentar compreender a metafísica do ser, a política e as relações humanas, as paixões e as desilusões inerentes da vida.  Podemos “acreditar”, ou não, que ler tal tipo de literatura nos proporcionará um maior desenvolvimento das nossas habilidades empáticas e sócias, como proposto pelo artigo citado. Porém, o fato é que se enveredar pelo universo de Turguêniev é definitivamente uma experiência encantadora.


A VÉSPERA
De Ivan Turguêniev
Tradução de Paula Vaz de Almeida
e Ekaterina Vólkova Américo
Editora Boitempo
200 páginas
R$ 49

*Jacques Fux é matemático e escritor, autor de 'Meshugá: um romance sobre a loucura' (José Olympio, 2016), 'Nobel' (José Olympio, 2018), entre outros.

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