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Com delicadeza, livro infantil trata de assédio e violência contra criança

Em ‘Leila’, Tino Freitas e Thais Beltrame descem ao fundo do mar para falar de um assunto difícil, mas que precisa ser tratado

Bia Reis

Como falar de assédio e violência com as crianças, sejam elas vítimas ou não?

No recém-lançado Leila, os autores Tino Freitas e Thais Beltrame descem ao fundo do mar e apresentam Leila, uma baleia independente, de cabelos compridos, que adora vestir seu biquíni e nadar por aí. Em um de seus passeios, Leila encontra seu vizinho, o Barão. Ele a cumprimenta, a chama de “Pequena”, a elogia. Pede um beijo de bom dia. E a beija no rosto. O narrador entrega: foi como se tivesse roubado algo de uma criança.
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Barão cerca a baleia, diz que vai nadar ao seu lado. Leila não gosta, queria ficar sozinha. Mas, com medo, se cala. O vizinho continua a rodeando. Com uma voz sedutora, descreve o narrador, Barão sussurra: “Olha, pequena, se você for gentil comigo, te darei biquínis ainda mais bonitos. O seu está meio torto. Vou ajustá-lo pra você”.
Leila quer dizer “não”, mas se cala de novo. E Barão mexe na alça de seu biquíni. A baleia fica arrasada. Seu peito dói, pesa. E sua dor a faz submergir. Leila pensa em pedir socorro, mas o vizinho é mais rápido e, de repente, corta seus longos cabelos. A baleia fica petrificada. Barão fala, então, que agora os dois têm um segredo. E Leila desiste de nadar.
Nesta primeira parte do livro, Tino e Thais usam palavras e imagens para narrar a história. Os dois, que assinam o projeto gráfico com a produtora editoral Lílian Teixeira, utilizam as páginas duplas como se fossem uma só, dando amplitude ao mar. Até aqui, o leitor precisa “ler” as imagens para compreender que Leila é uma baleia, porque o texto verbal não diz. O texto também não diz que Barão é um polvo – novamente as imagens são indispensáveis.
Thais parece se afastar e se aproximar da cena, como uma lente fotográfica, e aposta em ângulos inusitados. Ora Leila nada no imenso mar, ora surge dentro do olho do Barão, pequena e frágil, ora o vizinho aparece imenso, ora vemos apenas um de seus tentáculos. É pelas imagens que descobrimos, entre outras coisas, o tamanho de Barão.
Em seguida, Tino e Thais dão sequência à narrativa usando apenas imagens. E obrigam o leitor a virar o livro. É esse movimento – de colocar o livro na vertical – que dá profundidade ao mar, que faz o leitor “sentir” a queda e a tristeza profunda de Leila. Em uma sequência de três páginas duplas, o corpo da baleia despenca até a escuridão do fundo do mar, sozinha, desamparada, e, amparada por amigos, consegue, aos poucos, reagir. O preto e cinza dá, lentamente, lugar ao cinza claro e ao branco, até chegar a um claro azul.
Na terceira parte, o leitor tem de voltar o livro para a horizontal, e os autores voltam a usar também as palavras. Um dia, Leila reencontra o Barão, o que desperta sentimentos e pensamentos confusos. E o narrador revela: ela não sabe se sente raiva, medo ou coragem – ou tudo isso junto. Leila se lembra do abandono, dos amigos que a resgataram. E reage.
Os autores usam imagens e palavras e trabalham com o tamanho das fontes para explicitar o que Leila diz, o que Leila sente ao verbalizar, o tamanho de seu alívio. As palavras saem da boca da baleia, aos gritos, de maneira enfática.
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Tino me contou um pouco sobre as relações que palavra e imagem estabelecem entre si em Leila, vejam que interessante:
“Sobre a relação de texto e imagem, todo o tempo o antagonista chama Leila de ‘Pequena’ e é mostrado, aqui e ali, como é percebido por ela: enorme. Quando o plano revela o real tamanho dele (do Barão), fica clara a importância da voz. O livro fala disso. É preciso nos conhecermos, ouvir nossa própria voz. Outro jogo que está na ilustração, e que foi conversado exaustivamente por nós, é a história da ostra, que é uma metáfora para Leila, desde a capa. A ostra aparece primeiro fechada. Mas quando Leila diz ‘meu nome não é Pequena’, a disposição gráfica faz parecer que a ostra é quem diz isso. As histórias se encontram. Quando Leila se sente livre, a ostra se abre e revela uma pérola. Ao final, pérola e Leila estão juntas. A pérola se forma a partir do incômodo da ostra com algum corpo invasor. É uma proteção. Aquele ‘agressor’ não sai dali, mas não fará mais o mesmo mal que antes. imaginamos que com quem sofre abusos seja parecido. Nunca se perde a sensação da violência, mas se fica alerta, protegido, para que aquilo não se repita.” 
Os autores usam uma série de estratégias que faz de Leila um livro que dá vontade de ler, reler, fechar e depois abrir de novo. A cada leitura, novas descobertas. Na capa, as letras parecem nadar e a pequena ostra, citada por Tino acima, chama a atenção. Ao longo das páginas, ela própria conta uma história à parte, mas conectada à de Leila, repare. A história começa antes mesmo da página que traz o nome do livro e dos autores. Há também críticas espalhadas, de forma sutil. Em uma página, uma tartaruga carrega consigo uma sacolinha plástica; em outra, pode-se ler “não é não” grafitado em um farol num canto. Há crítica e posicionamento político, como Tino gosta e traz em vários de seus livros.
A vontade de falar sobre assédio, conta Tino, nasceu em 2014, quando ao visitar uma escola teve a sensação de que uma das crianças era vítima de violência. O escritor comunicou o fato à professora e passou a pensar em como tratar do assunto. No ano seguinte, encontrou a delicadeza: a vítima seria uma baleia e um tubarão, o agressor. O projeto original seria feito com a ilustradora Elvira Vigna, com quem Tino fez o lindíssimo Primeira Palavra (falei sobre ele em 2012, clique aqui para ler). Mas Elvira morreu antes de o projeto se concretizar.
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Tino me contou sobre esse momento. Achei lindo o processo de luto e de retomada, compartilho com vocês:
“Precisei de um longo tempo de silêncio. Quando retomei o texto, reescrevi buscando abrir espaços para que outra parceira pudesse criar e transformar Leila em nossa história. Foi aí que encontrei a Thais. Conversamos muito durante o processo, desde o início, com total aval da editora, que nos deu liberdade e tempo para criarmos. Um exemplo da nossa troca foi quando Thais sugeriu que o antagonista não fosse um tubarão e sim um polvo. Ela justificou dizendo das possibilidades de metamorfose que a aparência desse animal pode adquirir, dependendo da situação. Adorei. E sugeri, em seguida, que ele tivesse cinco tentáculos em vez de oito, explicando que ele (o tentáculo)também seria uma mão. Aparentemente Leila é um livro a quatro mãos. Mas, bem da verdade, sutil e inteligente, Lurdinha (Mendes, editora na Abacatte, que assina a edição com José de Alencar Mayrink) deu enorme contribuição ao projeto. Leila é um livro a seis mãos. Thais e eu passamos mais de um ano desenvolvendo o projeto. Foi importante ter esse tempo.”
A delicadeza com que Tino e Thais falam sobre abuso e dor, a forma como palavras e imagens se interrelacionam para construir a narrativa e o fato de exigir do leitor uma postura ativa, como quando propõe a virada do livro para o sentido vertical, se fazendo valer da materialidade do objeto, fazem de Leila uma obra única, dessas capazes de mexer com leitores de todas as idades. 
O escritor Tino Freitas já esteve outras vezes nesta Estante de Letrinhas, com, por exemplo, com o livro Bichano
Serviço
Leila
Autores: Tino Freitas e Thais Beltrame
Editora: Abacatte
Preço: R$ 44
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Estadão Conteúdo

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