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"Conto contos pelo potencial empático das histórias", afirma cearense difusora da poética sertaneja


O movimentar das águas do açude tem fluxo democrático. Desemboca no pescador à espreita do peixe e na lavadeira que aproveita a corrente. De tanto margear essa harmonia silenciosa, a terra não fica atrás: também se une a seus aliados. É o agricultor que revolve o chão, e a rendeira – cujos pés, fixos no solo, sustentam o corpo-apoio para as mãos trabalharem. A próprio modo, cada um desses personagens cria uma ambiência narrativa forte e inspira gente disposta a levá-los adiante para conhecimento geral. É preciso ecoar a voz do sertão.
Tâmara Bezerra, assim, considera-se reunião de tantos e tantas. Daqueles povos simples, muitas vezes anônimos, porém detentores de sabedorias e histórias muitas. Natural do município de Orós, no Centro-Sul cearense, ela cresceu envolta por narrativas à boca pequena e considera que foram esses relatos os responsáveis por ressignificar a vivência pessoal.
“Me descobri forjada na tradição como criança, escutadora da infância, a partir da dinâmica das atividades laborais de grupo da cidade. A partir daí, no meu repertório, procuro privilegiar os contos que recolho ou os tradicionais, que outros colegas recolheram”, explica.
Independentemente do recorte, há uma urgência implícita: difundir a poética da paisagem sertaneja cearense, donde faz morada uma pluralidade de tipos narrativos e riqueza de relações. Missão encarada pela educadora, contadora e escutadora de histórias com vistas a tornar tudo mais abrangente e especial: único. Em encontro com o Verso, Tâmara detalhou esses processos e fez questão de mencionar: o sertão pode ser, sim, onipresente.
“A poética da literatura desse ambiente não está só nos contos, mas também no cotidiano. A linguagem e metáfora estão presentes em várias coisas e em tudo que dizemos, especialmente nas comunidades tradicionais. É onde atestamos a plurissignificatividade que essa arte tem. E quando se convive com as pessoas desses locais, acabamos entrando em paisagens poéticas. Afinal, é disso que o sertão é feito”, avalia.
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Cearense tem livros publicados sobre o narrar e integra grupos de contadores de histórias
Foto: Isanelle Nascimento
Não sem motivo, age feito Guimarães Rosa (1908-1967), com o cenário dentro de si, justificando o querer levá-lo para onde for e caminhando na mesma esteira em que trilham outros profissionais e eventos na seara. Só neste ano, por exemplo, um dos maiores clássicos da literatura brasileira, “Grande Sertão: Veredas”, voltou às prateleiras em nova edição pela Companhia das Letras. Também a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) terá como grande homenageado o escritor Euclides da Cunha (1866-1909), autor de “Os Sertões”. Sintomático? “É um tema que está tão forte em mim que não consigo só carregá-lo. Tenho que narrá-lo. É algo que transborda”. 
Passagens
Há 25 anos, a profissional – graduada em Serviço Social e especializada em Arte-Educação, além de mestranda em Educação Intercultural pela Universidade de Lisboa – traça o caminhar literário agregando mais pessoas ao ofício. A conversa com nossa equipe de reportagem, por exemplo, aconteceu durante oficina na Caixa Cultural voltada para educadores e contadores de histórias, em que reverberou conhecimentos e olhares.
A forte experiência no ramo deixa entrever uma fala clara: “A potência do narrar está na capacidade de atravessar tempos, geografias e, inclusive, o que não se conhece. Isso tem um elemento de interculturalidade muito necessário, sobretudo para o contexto da atualidade, de tanta intolerância, em que o outro, por não ser igual a mim, merece que eu seja avesso a ele”. Assim sendo, lembra de quando, em Portugal – País onde hoje também reside, intercalando trabalhos no Ceará – realizou vivência com crianças contando histórias de onça.
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Os instrumentos que acompanham a profissional traduzem a camada afetiva das histórias que reverbera: o candeeiro para iluminar, flores e diversas costuras
Foto: Isanelle Nascimento
“Esse animal não existe por lá. E quando eu conto contos sobre ele, os meninos amam. Depois, oriento para que possam ir no YouTube e olhem o que é uma onça. Um dia, vinha atravessando a estação de metrô, quando uma criança gritou, naquele sotaque português, ‘eu vi a onça! Eu vi a onça!’. Aquilo foi uma reunião de tudo isso que estou te dizendo”, sintetiza.
“A literatura tem um mundo dentro dela que faz com que a gente veja que o universo é vasto, mas podemos atravessá-lo por conta das narrativas, dessa camada afetiva que os contos têm”.
Por isso mesmo, defende que, em território cearense, as políticas públicasvoltadas para o narrar precisam oferecer, convidar e ampliar espaços, principalmente para o narrador oral. “Temos uma rede de contadores de histórias no Ceará que recentemente começou a ser tecida. Acho isso fundamental, não só por uma questão da categoria laboral, mas por algo mesmo do trabalho de partilha de todas essas pessoas, de construção coletiva. Há que se pensar em tudo isso, principalmente no cenário em que estamos”.
Projetos
Até o momento, Tâmara tem publicado três livros de ficção e alguns teóricos, dentre eles “Costurando histórias”, inspirado no Grupo de Estudos, Pesquisas e Partilhas com narrativas orais intitulado Costureiras de Histórias. “O nome é em homenagem às tessituras todas da arte de narrar. As costureiras, quando se juntam, contam contos, contam da vida, e narram”, sintetiza. 
Também está em ritmo de finalização do documentário “Sete Histórias à Sombra do Cajueiro”, filme de caráter etnográfico em que partilha a direção com o cineasta Marcelo Paes de Carvalho e será lançado em breve. O trabalho é resultado de imersão de dois anos, junto a estudantes da Universidade Federal do Ceará, na comunidade quilombola de Ubaranas, próximo a Aracati. 
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Em oficina na Caixa Cultural Fortaleza, Tâmara repassou conhecimentos e vivências a outros narradores e narradoras de contos, sedimentando forte diálogo com a arte
Foto: Isanelle Nascimento
“A escuta desse povo gerou um livro, ‘Relicário de Ubaranas’. Durante a trajetória, resolvemos fazer o filme. A obra em audiovisual é sobre a recolha dos contos nessa comunidade, a escuta dos moradores e todas as camadas de matriz africana e contribuição indígena. É bem brasileiro, bem cearense. Bem Ubaranas”, garante.
Além desses projetos, recentemente esteve na Galícia (Espanha), integrando o corpo de participantes do Festival Sete Falares. O evento é um dos mais tradicionais do mundo, voltado para adultos. “Um lugar bem bonito, onde a ambiência dos contos é super interessante”, ressalta, rememorando o local em que dividiu a fala com nomes como Carolina Rueda (Colômbia), Ángela Arboleda (Equador) e Cándido Pazó (Galícia). Itinerância em ritmo de inspiração, força e criticidade. 
Visivelmente emocionada ao trazer à superfície tais passos, encaminha a conversa para o fim afirmando:
“Como artista, narradora, educadora, mulher, mãe, o amor de alguém e amiga de muitas pessoas, estou de luto, desde o início desse processo obscuro que o Brasil vem atravessando. Mas acho que é isso: uma travessia. Tem um conto tradicional em que o personagem todo o tempo diz, ‘Nós travessa, nós travessa’. Vamos passar”, reflete.
“Busco contar contos exatamente porque acredito no potencial empático das histórias. Será minha bandeira e, se precisar, minha arma. Então, sim, de qualquer forma, acho que a gente atravessa. E será pela arte. Por isso que ela é a primeira a ser massacrada. É pela arte. Se o narrador, o artista tem sua voz, precisa gritar, de alguma forma. Se não, nós ‘não travessa’”.
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Olhos e ouvidos atentos em Tâmara Bezerra durante partilha de conhecimentos
Foto: Isanelle Nascimento
>> Saberes plurais: quem inspira a força do narrar de Tâmara
Entre as principais influências de Tâmara Bezerra estão estudiosos e fomentadores da arte do narrar, como Geraldo Tartaruga, Regina Machado, Benita Prieto, Rosana Mont'alverne, entre outros nomes nacionais. No Ceará, dona Iracema e Birol - respectivamente uma lavadeira e um pescador de Orós - e Almir Mota são alguns de seus principais incentivadores. "Gosto sempre de contar, principalmente, a experiência com o Almir, um amigo muito querido, que foi quem me batizou nesse lugar da narração, de dizer 'suba que o palco lhe pertence'. Foi a voz dele que me disse isso", afirma a artista.

Diário do Nordeste

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