Pular para o conteúdo principal

Contos de Jarid Arraes expõem opressões cotidianas

Escritora cearense explora intimidade de personagens femininas marginalizadas com narrativas curtas, mas repletas de tensões e surpresas.
Escritora cearense explora intimidade de personagens femininas marginalizadas com narrativas curtas, mas repletas de tensões e surpresas.
Escritora cearense explora intimidade de personagens femininas marginalizadas com narrativas curtas, mas repletas de tensões e surpresas. (Cia das Letras)

Por Jacques Fux*
Em Cadernos do cárcere, o filósofo italiano Antonio Gramsci denominou “subalternos” aqueles pertencentes às classes oprimidas, substituindo o termo marxista, e comumente utilizado até então, “proletariado”. Novos e contemporâneos teóricos perceberam que as mais variadas formas de opressão vão além da classe e da condição econômica: há também a opressão em virtude da cultura, raça, religião, orientação e preferência sexuais e etnicidade.
Para a crítica literária Gayatri Spivak – autora do pioneiro e importante estudo, Pode o subalterno falar – o subalterno é aquele que não é e não pode/deve ser representado, inclusive na própria representação que se propõe dar a ele – porque, logicamente, no momento em que ele é representado, passa a ser inserido no discurso e perde o caráter de subalternidade. Esse seria um paradoxo acerca da hegemonia da escrita/lugar de fala, porém muito interessante e essencial para o estudo da pensadora indiana.
Em O que é lugar de fala?, Djamila Ribeiro expande as propostas e questões de Gramsci e Spivak e reflete sobre o feminismo negro. A filósofa paulista se utiliza de conceitos e teorias para combater a ideia de que existiria uma precedência de uma determinada forma de opressão. A autora argumenta que é preciso retratar/narrar acerca dos vários e distintos grupos sociais, em suas particularidades e individualidades, mostrando, posteriormente, que alguns desses grupos partilham experiências próximas.
Em Redemoinho em dia quente, Jarrid Arraes incorpora e amplia, por meio de seus contos de ficção, a teoria cunhada por Spivak, Gramsci e Djamila Ribeiro. A autora cria personagens – muitas delas lésbicas, religiosas drogadas, idosas, bissexuais, trans e negras – e as coloca no centro da discussão contemporânea. Nascida em Juazeiro do Norte, na Região do Cariri (CE), em 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora dos livros: Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. É atual curadora do selo literário Ferina, vive em São Paulo e tem mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel que também exploram esse universo.
Nos 30 contos presentes no Redemoinho, Jarrid nos conduz por percursos e histórias que retratam o cotidiano e a intimidade de mulheres esquecidas ou desprezadas pela “narrativa hegemônica oficial” – algo que, felizmente, está/deve mudar. Oprimidas, contraditórias, profundas, crentes e rebeldes, suas personagens nos fazem sair do conforto da leitura e do nosso lugar social (privilegiado). Há sempre uma ação impactante, um evento tenso e surpreendente, que transforma/transtorna a linearidade e a expectativa do vulgar ao longo do texto. Nesses momentos, acontece, entretanto, uma ruptura abrupta da trama – e a linguagem, por vezes, se encontra dissociada e afastada do espaço narrativo criado pela autora. O texto não é comprometido, embora um certo estranhamento se manifeste.
Em A experiência-limite, o escritor e crítico francês Maurice Blanchot escreve sobre o lugar em que aparece a violência no martírio/angústia/crueldade imposta por um ser humano em relação a outro. Essa violência não pode ser encontrada somente nos tormentos psíquicos e físicos – como podemos comprovar nos contos de Jarrid – ela se dá no cotidiano, nos eventos banais e na vida de todas as pessoas. Blanchot, em seu diálogo com o escritor francês Georges Bataille, encontrado no livro L’expérience intérieur, diz que a questão da experiência é, de alguma forma, uma questão de autoridade.
À margem do discurso dominante-hegemônico, temos as experiências/autoridades dessas personagens elaboradas por Jarrid, que transitam entre espaços julgados anteriormente periféricos e que vivem as mais diversas “experiências-limite”. Em seus contos, percebe-se o dominante silêncio da opressão, agora metamorfoseado em palavras e histórias. Paradoxalmente, essa mesma palavra – intensa, dramática e também banal –, é capaz de expor, enaltecer e enobrecer o silêncio da marginalidade e da invisibilidade social (antiga, atual e acertadamente em mudança).

REDEMOINHO EM DIA QUENTE
De Jarid Arraes
Companhia das Letras
152 páginas
R$ 39,90 e R$ 27,90 (digital)

*Jacques Fux é matemático e escritor, autor de 'Meshugá: um romance sobre a loucura' (José Olympio, 2016), 'Nobel' (José Olympio, 2018), entre outros.

Comentários