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'Literatura precisa ir além de protestos políticos', defende a premiada Ayelet Gundar na Flip

Autora israelense participou de mesa com a nigeriana Ayobami Adebayo na tarde desta sexta (12). Escritoras debateram representação das mulheres na literatura.

 
Por Thaís Matos, G1
 
Ayelet Gundar-Goshen ganhou o principal prêmio literário de Israel com seu novo romance “Uma noite, Markovitch”. Ele foi celebrado muito por seu contexto político e histórico: um grupo de jovens da Palestina vai até a Europa sob comando nazista para resgatar mulheres judias por meio do casamento.
Denso, ele toca ainda no machismo: O personagem principal se apaixona pela mulher com que casa e não quer lhe dar o divórcio, mesmo contra sua vontade.
O pano de fundo é político sim, mas a autora não quer ser lida apenas sob esse viés. Durante debate na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), ela fez um apelo.
“Todos os romances devem ser lidos no nível político, mas eu não quero que ele seja uma declaração política. Isso me incomoda.”
“A literatura tem que ser mais complexa e profunda que faixas e gritos, ir além de protestos. Eu não quero que usem meu livro pra fazer diagnósticos sobre a sociedade israelense. Luta política é feita na rua.”
A também premiada Ayobami Adebayo, escritora nigeriana, dividiu mesa com a israelense e concordou com a colega.
“O processo político é importante, mas secundário. Todas as consequências sempre pairam sobre pessoas, indivíduos, o elo mais fraco.”
As autoras chamaram atenção para o sofrimento maldito de mulheres em sociedades em conflito.
“A guerra acontece no mundo estatal, mas na sala de estar. Essa história aconteceu numa época em que todo mundo estava preocupado com algo maior. A mulher dizia ‘fizeram algo errado comigo’ e as pessoas diziam ‘estamos em guerra, não há espaço para lidar com sua tragédia pessoal’”, diz Ayelet.
“Acontece com muitas mulheres até hoje. Em Israel, as pessoas pedem que as mulheres segurem seu sofrimento pessoal para depois que os conflitos acabarem.”

Protagonistas, mulheres e fortes

Ayobami Adebayo, escritora nigeriana premiada, participa de mesa na Flip 2019 — Foto: Walter Craveiro/Flip/Divulgação
Ayobami Adebayo, escritora nigeriana premiada, participa de mesa na Flip 2019 — Foto: Walter Craveiro/Flip/Divulgação

As duas autoras escrevem sobre dilemas de mulheres fortes em sociedades patriarcais.
Ayobami até quis escrever sobre amor, mas a realidade não a deixava em paz. "Comecei a escrever sobre amor, mas depois me veio o patriarcado e as consequências em uma sociedade que não vê os dois como iguais. Não dá para ignorar o desequilíbrio na relação dos casais", explica.
Já Ayelet escreveu pensando em sua filha. "Eu leio para minha filha e muitas das personagens femininas estão inconscientes, como a Bela Adormecida ou a Branca de Neve. A Ariel está muda. Muitas das histórias que eu ouvi quando era criança não têm as personagens femininas que eu gostaria que ela visse."
"Eu queria que minhas personagens celebrassem seus corpos e tivessem uma vida."
Em seu romance "Fique comigo", Ayobami narra a história de uma mulher que não pode ter filhos e seu marido é forçado pela família a ter uma segunda esposa capaz de engravidar.
"Uma vez eu ouvi alguém dizer 'por que você está falando assim com ela, ela é mãe de alguém'. E isso me machucou. Por que não colocar todas as mulheres nesse pedestal, e não só as que optaram pela maternidade?", questiona a escritora.
"Na Nigéria, nos anos 1980, ainda era bastante comum uma segunda esposa. E é preciso entender que os homem também estão presos porque às vezes eles não querem ter uma segunda esposa, mas precisam disso pra se validar na sociedade", diz.

Chega de vilões e heróis

 
Ayelet Gundar, escritora israelense, durante apresentação na Flip 2019 — Foto: Walter Craveiro/Flip/Divulgação
Ayelet Gundar, escritora israelense, durante apresentação na Flip 2019 — Foto: Walter Craveiro/Flip/Divulgação

Ayelet é psicóloga e, por isso, empática com todos os personagens. Seu protagonista, Markovitch, poderia ser escrito como um monstro por subjugar sua esposa a uma condição que ela não quer ter. E é inspirado na história real do vizinho do seu namorado.
"Quando ouvi aquela história, cheguei em casa e fiquei pensando que tipo de homem faria isso. Mas sou psicóloga e pensei que é muito fácil julgar assim. Então comecei a investigar por que nos apegamos a algo mesmo sabendo que aquilo é não é nosso."
A busca por essas perguntas a levou para a construção da própria história de Israel, que, para a autora, também não lida bem com seus heróis e vilões.
“Nós gostamos que a mitologia seja limpa. Pode ser sangrenta, mas um sangue nobre. Mas nos bastidores há esse homem patético que se apaixona por uma mulher que nunca teria se não fosse por força da lei religiosa.”
“Há um deslocamento entre o que acontece no palco e nos bastidores. Há coisas que não se encaixam na narrativa. E nós nos perguntamos se olhamos para eles ou escondemos. Markovitch não faz parte da narrativa que os israelenses vêm contando.”

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