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Um mito chamado João: conheça a trajetória da lenda da Bossa Nova

Cantor João Gilberto morre aos 88 anos.
Cantor João Gilberto morre aos 88 anos.(Foto: Marcos Hermes/AFP)

Filho de Juazeiro da Bahia, João Gilberto consagrou-se como o pai da Bossa Nova, mostrando ao Brasil uma nova forma de cantar e tocar violão. Sua história foi contada no caderno especial em comemoração aos seus 80 anos no Vida&Arte

Foi só aos 15 anos que João Gilberto ganhou seu primeiro violão. Foi só com essa idade que ele pode começar a transpor para as cordas de nylon o que já tinha assimilado das canções populares. Nascido na cidade de Juazeiro, na Bahia, no dia 10 de junho de 1931, João Gilberto Pereira de Oliveira demorou a ter nas mãos o instrumento que lhe consagraria. Mas, desde cedo, foi um apaixonado por música.
Ao longo dos quatro anos que frequentou dois colégios in- ternos em Aracaju (Sergipe), o menino Joãozinho tocou tambor, marcação e caixa na banda das escolas. Somente quando retornou a Juazeiro, em 1946, seu pai lhe deu um violão, com o qual passou a comandar o conjunto vocal Enamorados do Ritmo. Com quase 18 anos, ele decidiu que a música era o caminho e já morando em Salvador, capital baiana, largou o curso ginasial e passou a trabalhar como crooner da Rádio Sociedade da Bahia.
Em 1950, o cantor mudou- se para o Rio de Janeiro e foi convidado para ser o solista do grupo vocal Garotos da Lua, que atuava na Rádio Tupi, no programa Viva o Samba. A parceira, no entanto, só durou um ano porque os outros músicos não aguentavam mais as indisciplinas de João. Nesse entremeio, chegou a gravar um disco de 78 RPM com o conjunto e, em 1952, um solo para a gravadora Copacabana.
Logo depois, voltou a integrar grupos musicais, passando pelo Quitandinha Serenaders e Anjos do Inferno. Entre uma noitada e outra, deixava-se ficar pela varanda de uns amigos, ia ao bar com outros e assim ia esbarrando com nomes de destaque da música carioca, como Tom Jobim, Nara Leão, Roberto Menescal, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, entre outros.
Uma temporada de dois anos longe do Rio – entre 1955 e 1957 - foi essencial para João Gilberto amadurecer sua música e transformar completamente o cenário musical brasileiro. Depois de morar em Porto Alegre (RS), Diamantina (MG) e Salvador (BA), o cantor retornou à capital carioca com seu violão debaixo do braço e os dedos fazendo mágica nas cordas de nylon.
As inovações de João Gilberto foram registradas pela primeira vez em 1958, na música "Chega de saudade", de Tom e Vinícius, gravada no LP Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso. Nessa época, ele já mostrava seu jeito particular de lapidar a canção quando apontava problemas no modo como “a divina” interpretava. Depois, ele mesmo gravou o samba, desta vez, emprestando, além do violão, também a voz. Gravou ainda
Bim Bom, uma das suas raras composições, que já no título brinca com a sonoridade e a simplicidade do som que ele vinha fazendo. Sucesso nas rádios, burburinho entre os músicos, tentativas mil de entender aquilo. Nascia ali a Bossa Nova.
O primeiro álbum da carreira do baiano, também chamado de Chega de Saudade, veio no ano seguinte, trazendo clássicos como Desafinado, Rosa Morena e Hô-Ba-Lá-Lá (também composição dele). Em 1960, ele lança O Amor, O Sorriso e a Flor e em 1961, João Gilberto. Com esta trilogia, a Bossa Nova de João ganhou o mundo. No entanto, por incrível que pareça, hoje esses discos estão proibidos por ele de serem relançados. Coisas de João.
João Gilberto chegou aos Estados Unidos pelas mãos do amigo Paulo Santos, conquistou os admiradores do jazz americano e se consolidou com o disco Getz-Gilberto (1964), que tem Tom Jobim no piano, Stan Getz no sax e o baiano no violão. O álbum é considerado um marco na carreira de todos os envolvidos e na própria música brasileira. Um dos motivos para tanto sucesso é a presença de Garota de Ipanema, que trazia ainda a voz da estreante Astrud Gilberto. A baiana foi a primeira esposa de João, de 1959 a 1963, e, embora nunca tenha pretendido ser cantora, acabou se tornando uma grande estrela internacional. João também foi casado com a irmã de Chico Buarque, Miúcha, com quem teve a filha Bebel Gilberto.
Trajetória
Com uma discografia que soma 17 álbuns, João Gilberto nunca foi de compor músicas próprias, ele sempre preferiu gravar e regravar os clássicos, imprimindo-lhes sua maneira única de harmonizar, tocar e cantar. Chegou até a ser criticado por isso, mas continuou venerado pela genialidade das transformações. E se o perguntam por que não compõe mais, ele é claro: “Mas há tanta coisa bonita a ser consertada!”. O remendo de João se estendia, inclusive, às letras. Em Sampa, de Caetano, ele acrescentou a palavra “alguma” (deixou: “alguma, alguma coisa acontece no meu coração”) e mudou de “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” para “a força da grana que faz e destrói coisas belas”.
Poderia até dar em problema, mas ter uma música gravada por João Gilberto, o homem considerado um gênio na música brasileira, virou um atestado de qualidade. “Ele se tornava um parceiro de cada pessoa que ele gravava. Nesse sentido, ele é genial, ele transforma sem desrespeitar a linha dorsal da música. Todo mundo sempre teve muito orgulho de ter sua música transformada”, pontua cantora bossa novista Wanda Sá.
O último lançamento de João Gilberto foi o ao vivo João Gilberto in Tokyo. Nessa temporada, ele chegou a ser aplaudido de pé por até 25 minutos pelos japoneses. Os shows e as aparições públicas também passaram a ser algo raro. Embora não grave desde então, não param de aparecer registros inéditos não-oficiais pela Internet. João ganhou a fama de excêntrico, perfeccionista que implica com qualquer barulho - mesmo os saídos do ar condicionado de um teatro em silêncio, como fez na reinauguração do Teatro Santa Isabel, em Recife. Enfim, aquele cara que muita gente definiria como um chato. Ninguém viu, ninguém vê, mas todo mundo sabe: se João Gilberto é um mito, é igualmente e comprovadamente um gênio.
REDAÇÃO O POVO ONLINE

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