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José Agualusa: O Nobel de Literatura que exalta um criminoso de guerra

A Academia Sueca entregou o Nobel a um escritor que exaltou um genocida. Choveram protestos. Alfred Nobel deixou escrito que o prêmio deveria ser atribuído ao trabalho mais notável, defendendo ideais elevados. Esta segunda premissa tem originado larga controvérsia. Em primeiro lugar, porque o que é um bom ideal para uns pode não ser para outros. Em segundo, porque, algumas vezes, os escritores defendem uma ideia (eventualmente ideias torpes), e a sua obra, outra.

Por José Eduardo Agualusa*

O escritor Peter Handke, recém-agraciado com o Nobel de LiteraturaO escritor Peter Handke, recém-agraciado com o Nobel de Literatura
Nem sempre os acadêmicos suecos têm sido capazes de distinguir a obra do autor. Jorge Luis Borges não teria ganho o Nobel de Literatura por simpatizar com o chileno Augusto Pinochet. Borges, é verdade, defendeu, enquanto cidadão, regimes abjetos e ideias repugnantes – era, por exemplo, francamente racista. Contudo, quem ler os seus contos não encontra neles a defesa de nenhuma dessas ideias, muito pelo contrário. Não há nada nos contos de Borges que leve alguém a defender Pinochet.

Por outro lado, em 2001, a Academia Sueca premiou V. S. Naipaul, um homem antipático, misógino, machista, e tão ou mais racista do que Borges. Na época também houve protestos, sobretudo devido a uma série de bizarras declarações do escritor, logo a seguir ao prêmio, e a testemunhos da violência e desrespeito com que teria tratado duas das suas antigas companheiras.

Os suecos, sabiamente, premiaram não o cidadão V. S. Naipaul, mas um conjunto de romances excelentes, que traçam um retrato pouco otimista da Humanidade. Reler A Curva do Rio já conhecendo a biografia de Naipaul pode ser uma experiência incômoda, pois é impossível não associar o escritor ao personagem principal, que, a determinada altura, espanca a mulher. Porém, uma vez mais, ninguém conclui o livro sentindo-se encorajado a espancar mulheres.

Finalmente, há escritores que escrevem apaixonadamente sobre conceitos que aos olhos de outros parecem errados. No entanto, também esses leitores podem tirar bom proveito das obras em questão. Hemingway gostava de touradas, e escreveu magníficas linhas sobre touros e toureiros. Quando leio o que ele escreveu não me sinto compelido a ver touradas. Quero é sair para as ruas gritando contra um espetáculo que, depois de ler as tais linhas, me parece ainda mais arcaico e vil e degradante.

Nunca li Peter Handke. Agora que a Academia Sueca lhe deu o Nobel, vou ler. A admiração de Handke por um criminoso de guerra horroriza-me. O seu longo silêncio em relação aos massacres perpetrados pelas forças sérvias durante a guerra, nos anos 1990, é inadmissível.

“Sou escritor, venho de Tolstói, Homero e Cervantes. Deixem-me em paz e não voltem a fazer-me perguntas sobre esse assunto”, disse Handke, há poucos dias, tentando escapar às dezenas de jornalistas que cercavam a sua casa. Espero que os jornalistas continuem a fazer-lhe perguntas sobre esse assunto. Handke deve ser criticado e condenado pelas posições que tomou. Porém, se os seus livros são bons, se não envergonham Tolstói, Homero e Cervantes, então merecem ser premiados e lidos. Tão simples quanto isto.

José Eduardo Agualusa é jornalista e escritor angolano


Publicado originalmente no jornal O Globo

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