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Novos velhos livros e o perdido relógio do meu pai

Por Ricardo Soares*
Um colchão de retalhos. Dos livros lidos e vividos, dos apenas folheados, dos jamais compreendidos e dos que ainda não foram devidamente devorados.
Um colchão de retalhos. Dos livros lidos e vividos, dos apenas folheados, dos jamais compreendidos e dos que ainda não foram devidamente devorados. (Pixabay)
Ao colocar no pulso um antigo relógio de meu pai não tenho a ilusão que possa de novo entrar no tempo dele, nos seus falecidos batimentos ou nos seus olhos calculando ao olhar os ponteiros quanto tempo de vida lhe faltava. Na desmemória de meu pai - vitimado pelo Alzheimer- busco minha própria memória e achar seu relógio, que não era usado desde bem antes de 1996 quando ele morreu, foi mais um capítulo de um lento, dolorido mas também prazeroso processo de limpeza cuja cena principal é a arrumação geral de livros e papéis acumulados  durante mais de 40 anos de leituras e atividades ao redor da palavra. Me explico:
De 1982 a 2002 morei em um apartamento na Vila Mariana em São Paulo e lá construí uma biblioteca funcional - metade no escritório, metade num corredor de acesso aos quartos - de onde tirei pouca coisa quando me separei e vim morar em uma casa na Granja Viana, cercanias de São Paulo. É que no apê antigo ficou a ex-companheira com meu filho e por conveniência e comodismo de minha parte acabei só tirando de lá os livros de que precisava com mais urgência. Agora as coisas mudaram, estamos todos revendo nossas vidas, hora de juntar os livros todos num só canto, descartar os descartáveis, rever cada lembrança que cada volume evoca.
Para não parecer pedante não vou aqui alinhar a minha lista de autores notáveis que encontra agora abrigo em ordem alfabética na minha memória afetiva. O que posso dizer é da minha consciência de acumulador incorrigível de volumes e histórias, do meu orgulho de ter partilhado prosas e conversas com vários dos escritores que moram nas minhas estantes. Olho, pois, todo pimpão, autógrafos de Saramago, Jorge Amado, Fernando Sabino, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant'Anna, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar e muitos mais. Lamento a ausência dos autógrafos sobretudo de Gabriel García Márquez com quem me encontrei casualmente há exatos 30 anos perto do Arco do Triunfo parisiense e, após um inesperado e longo papo, só percebi bem depois de que deveria ter corrido atrás de um livro dele para que autografasse. Fica essa memória diante de parte de suas cinzas que vi ainda esse ano em Cartagena das Índias.
Que me perdoem os amáveis leitores e leitoras mas impressões a esmo sobre uma grande biblioteca desgovernada - creio ter perto de 4000 volumes - que aos poucos é colocada em ordem alfabética são assim mesmo. Um colchão de retalhos. Dos livros lidos e vividos, dos apenas folheados, dos jamais compreendidos e dos que ainda não foram devidamente devorados. Há buracos de formação a serem preenchidos. A leitura completa da Divina Comédia de Dante e do Quixote de Cervantes. A degustação de finos e difíceis biscoitos como "Ulisses" de Joyce ou mais de Dostoiévski . Por outro lado, há satisfações como a leitura já ampla de Clarice e Guimarães Rosa , os versos de Bandeira, os folhetins de Nelson Rodrigues, quase tudo do já citado García Márques e do Vargas Llosa sem falar em Borges, Cortázar, Paul Theroux ou Henry Miller.  Mas a sensação ao contemplar os lidos e não lidos é que não dará tempo de ler ou reler tudo. Mesmo que eu ajuste os ponteiros do relógio do meu pai aos meus ponteiros sei que não dará tempo. Então, como Proust que li mal, imagino estar vivendo em busca do tempo perdido nessa profusão de livros e achados.

*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Publicou oito livros, dirigiu 12 documentários.

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