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‘Brexlit’: Saída britânica da UE inspira gênero literário que abarca realismo, distopias e thrillers

LONDRES - Elisabeth tem 32 anos e Daniel, 101. A diferença de idade não impede a amizade que marca suas vidas. Enquanto ele está inconsciente à beira da morte, ela observa a lenta partida do amigo e o caos do lado de fora. O poético “Outono”, da escritora escocesa Ali Smith, se passa em 2016, uma semana após o plebiscito que decidiu a saída britânica da União Europeia. O romance, início de uma aplaudida tetralogia, foi a primeira obra de ficção a refletir o impacto do Brexit sobre um Reino Unido perplexo, fraturado e, para sempre, mudado. Vários outros livros se seguiram, criando um novo gênero literário que movimenta o mercado britânico: o Brexlit (Brexit + literatura).
Publicado apenas quatro meses após o referendo, “Outono” abriu o caminho para uma catarse literária de diferentes estilos, entre realismo, distopias, romances históricos e thrillers. Tanto nomes consagrados, como Smith e Jonathan Coe, quanto novos autores foram influenciados pelo tema dessa separação ainda não resolvida, diretamente ligada à discussão sobre a identidade britânica numa era de ansiedade.
Elisabeth e Daniel são pessoas comuns numa cidade do interior onde as duas metades da população não se falam, rachadas pelo Brexit. “Middle England”, de Coe, acompanha um escritor de meia idade equilibrando-se entre famílias e gerações que também não se entendem, sem perder o autodepreciativo humor britânico. Já os protagonistas do elogiado “The lie of the land” (A mentira da terra, em tradução livre), de Amanda Craig, tentam sobreviver à dolorosa combinação de divórcio e desemprego. Falido, o casal Quentin e Lottie troca Londres pela área rural de Devon, e se depara com um lado do país, marginalizado e xenófobo, que eles não conheciam.
— O Brexit é um trauma nacional que dividiu famílias e amigos mais profundamente do que a antiga divisão entre esquerda e direita — diz Amanda. — É inevitável que romancistas interessados em fatos contemporâneos respondam a essa divisão entre campo e cidade, velhos e jovens, entre os que têm mais e os que não têm nada —sintetiza a escritora, que voltará ao tema em seu próximo livro.

De heroína a pária

O Brexlit também é um terreno fértil para narrativas distópicas. Na sátira política “Time of lies” (Tempo de mentiras), de Douglas Board, o ex-hooligan Bob Grant é eleito primeiro-ministro à frente de um partido populista que cresce no vácuo deixado pelas legendas tradicionais. Trata-se da Inglaterra de 2020. O novo premier ameaça um ataque nuclear à Bélgica, enquanto seus eleitores raivosos gritam “Ninguém gosta de nós. A gente não se importa”.
— É importante distinguir entre a escrita distópica como produto da nossa época e as respostas literárias imediatas ao Brexit, que são predominantemente satíricas. Esse é o caso do livro de Board, que destaca a crise atual zombando dela. Ele fez o mesmo na sequência, “The rats” (Os ratos), que fala de uma visita de Donald Trump à Escócia — esclarece Dan Hiscocks, da editora Lightning Books, que lançou a sátira.
Autor de “Blood, white and blue” (Sangue, branco e azul), James Silvester confessa ter reagido ao Brexit de forma passional. Ele criou a heroína Lucie Musilova, uma tcheca-britânica que se sente rejeitada por seus dois países. Ex-combatente no Afeganistão, ela é contratada para proteger um parlamentar anti-Brexit. A inspiração para o thriller veio da mulher do escritor, cidadã europeia que passou a ser insultada na Inglaterra depois do referendo.
—Queria que a personagem refletisse a sensação de ser repentinamente indesejada em sua própria casa por causa do discurso da extrema-direita. Se antes ela se sentia em casa em toda a Europa, agora não pertence a lugar algum. Vai de heroína de guerra a pária — definiu Silvester, que já lançou o segundo livro da série.
Se o público parece saturado das notícias sobre o interminável processo do Brexit, as editoras sinalizam que no campo da ficção a sede por narrativas sobre tensões culturais e sociais aumenta. Lembrando que “1984”, de George Orwell, chegou ao topo da lista dos mais vendidos da Amazon em 2017 — ou seja, pós-Brexit e pós-Trump — a plataforma Lulu, para autores independentes, divulgou um guia para quem quiser se aventurar no gênero Brexlit.
— Estamos recebendo um grande número de obras de estreantes sobre temas distópicos — confirma Hiscocks. — Olhar para o futuro de forma pessimista faz parte do zeitgeist, por razões claras: desigualdade crescente, qualidade de vida em queda, crise habitacional, migração, terrorismo, ascensão do extremismo, a mentalidade das mídias sociais e, acima de tudo, mudanças climáticas.

Romances históricos

O futuro apocalíptico ou o presente angustiante, de abandono e incerteza, são as faces mais comentadas do gênero apelidado de Brexlit — termo cunhado pelo jornal “Financial Times”. Mas novos romances sobre o passado também se espalham pelas prateleiras das livrarias de Londres. Embora não abordem diretamente a saída da UE, surgiram no rastro da complexa crise de identidade desencadeada pela votação histórica que paralisou o Reino Unido nos últimos três anos. Entre os lançamentos, há épicos sobre reis da antiguidade que combatem invasores estrangeiros, assim como uma nova safra que tem a ascensão do fascismo e a explosão da Segunda Guerra como pano de fundo.
Professor de literatura contemporânea do Royal Holloway, da Universidade de Londres, Robert Eaglestone se debruçou sobre o Brexlit e identificou uma série de subgêneros literários que já emergiram como parte desse movimento. Para ele, esses livros adicionam outras camadas à literatura britânica pós-colonial, que aborda questões como raça, identidade e imigração há pelo menos três décadas. Mas a característica central do novo gênero é o retorno às novelas “sobre o espírito da nação”, uma tradição que veio de Charles Dickens e suas críticas sociais.
— Os últimos livros de Jonathan Coe e Ali Smith são o melhor exemplo disso, com personagens variados de diferentes segmentos da sociedade reagindo ao momento que a nação atravessa — explica o teórico e crítico.
Ao passo em que o processo de divórcio da UE se arrasta indefinidamente, novas subdivisões literárias vão ganhando força. Eaglestone destaca obras bem distintas, porém representativas da tendência de dissecar o que acontece com uma sociedade que vê vínculos se despedaçando. Melissa Harrison, por exemplo, fala dos perigos do nacionalismo numa comunidade rural inglesa durante a década de 1930, enquanto Barney Farmer explora personagens concebidos originalmente para quadrinhos no romance “Drunken bakers” (“Padeiros bêbados”), sobre uma turma de trabalhadores tão marginalizada que já não dá a mínima para o que sai do forno. Nem tudo, no entanto, é literatura de boa qualidade, como aponta o teórico:
— Também há obras sobre a Segunda Guerra que mistificam o heroísmo dos britânicos em sua luta solitária contra o mal, o que honestamente não corresponde à realidade — observa.
O Brexlit, portanto, retoma questões que não são novas. Em meio ao avanço do extremismo em diferentes partes do mundo, os leitores também estão voltando a obras fundamentais como as de George Orwell ou Hannah Arendt para entender as raízes do totalitarismo, ressalta Eaglestone.
— São livros que ficaram ainda mais relevantes e proféticos. Quando li Arendt pela primeira vez há 20 anos, encarei como livros de História. Agora, voltei a eles, e parece que estou lendo um jornal — resume.
Quando a sátira de Douglas Board sobre um ex-hooling tomando Downing Street de assalto foi lançada, em 2017, um crítico disse que o livro estava desatualizado porque os partidos tradicionais haviam superado os pequenos nas eleições britânicas. Dois anos depois, e às vésperas de uma nova votação, o cenário político britânico já mudou totalmente.
— Relançamos o livro, e os críticos ficaram impressionados como ele reflete a realidade — diz o editor Dan Hiscocks. — O título “Tempo de mentiras” é perfeito para a nossa época.
Fonte: O Globo

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