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Narrar o racismo

O racismo é um objeto incompreendido e, numa linha de causalidade, as consequências do racismo são atributos dessa incompreensão. As consequências do racismo seriam pelo menos amenizadas caso houvesse compreensão sobre o que é o racismo. Essa compreensão é, antecipadamente, recusada pelos sujeitos sociais como estratégia, consciente ou inconsciente, de “autopreservação”, para lembrar Bauman e May (Aprendendo a pensar com a Sociologia, 2010), de se evitar perdas pessoais e também institucionais.
Compreender o racismo, a começar pela aceitação de que o racismo engendra a vida social, é comprometer-se com uma linha de racionalidade subversiva, que duvida da aparente normalidade das relações interpessoais em quaisquer âmbitos, que coloca em xeque o que está estabelecido como ordem natural das coisas. A compreensão do racismo se configura como um divisor de águas dilacerador na psique: doravante, a vida será A. R. e D. R., ou seja, Antes do Racismo e Depois do Racismo. Antes do Racismo, vemos tudo por um prisma de igualdade, tendo sempre como referência um primado de ordem aparentemente apenas cristão, mas que está em todas as religiões – e perversamente: somos todos iguais. Depois do Racismo, vemos tudo por um prisma de diferença, tendo como referência um primado de ordem política, que nos força a enxergar o próprio nariz – e revoltosamente: somos todos desiguais. A compreensão do racismo nos lança num mundo sem Deus, desencantado.
O racismo, que realmente impõe a produtividade científica do conceito de raça no século 19, como tem argumentado Silvio Almeida (Racismo estrutural, 2018), configura-se como um monstruoso problema hermenêutico, cuja operacionalização é fundamental para que possamos sonhar com a sua erradicação algum dia. As compreensões, o que se processa na esfera hermenêutica, são movimentos da vida ativa, em primeiro lugar, segundo a perspectiva de Hannah Arendt (A condição humana, 1958), e são ações interessadas pelo simples fato de que, como postula Pierre Bourdieu (Razões práticas, 1994), toda ação é interessada, até mesmo a ação dita desinteressada é interessada – no desinteresse, óbvio.
Logo, é preciso compreender, interpretar, o racismo como tal para que possamos enfrentá-lo devidamente, nos vários níveis (institucional, científico, político, econômico, cultural, midiático etc.), e essa compreensão encontra obstáculo, no Brasil, de três dimensões: religiosa, republicana, cultural. Essas dimensões mascaram, cada uma a sua maneira, o racismo, de modo a forçar uma modulação da sociedade brasileira como democracia racial, sim, por mais que dos anos 1960 para cá, como forma até de fazer média com o Movimento Social Negro, tenha-se rotinizado uma birra, não exatamente uma contestação categórica, com Gilberto Freyre, suposto teórico da “democracia racial” – não chega a tanto, de fato. Sem dúvida, o preceito de democracia racial interessa a religiosos, republicanos e culturalistas vulgares como senha cordial num jogo que é de dominação, uma luta pelo poder.
A luta contra o racismo no Brasil nos coloca, inevitavelmente, em confronto com todos aqueles e aquelas que negam o racismo como forma de evitar desconfortos diversos e, assim, conseguirem progressão na ordem natural injusta das coisas. Assumir que a sociedade brasileira se estrutura e funciona de modo racista significa romper com um pacto de silêncio em torno da desigualdade que vem a ser, no fundo, o grande segredo de estado no Brasil.
O primeiro impacto do rompimento com esse pacto se apresenta na esfera familiar; o segundo impacto se apresenta na esfera religiosa; e o terceiro se apresenta na esfera educacional. O membro de uma família negra ou branca, o fiel de qualquer igreja ou seita e o aluno ou professor que acusam qualquer educandário de racista são, no Brasil, estigmatizados, demonizados, desqualificados ou, no mínimo, percebidos como inconvenientes. Aceita-se o racismo, nessas instituições estruturantes da vida social, como assunto importante, como crime (Lei 7.716/89), nas últimas décadas, como “coisa feia” que não se deve fazer com os outros, como algo muito mais vinculado à esfera simbólica que à realidade social nua e crua. E assim se explica por que o racismo permanece como o maior dos males da sociedade brasileira, como a medula da desigualdade social.
A cada novembro, sentimos, todos os negros e negras violentados pelo racismo, uma necessidade ardente, explosiva, de dissecar o racismo praticado no Brasil, sobretudo como forma de ostentar nossa dignidade apesar da dor, na dor, com a dor – que nunca é pessoal apenas, mas coletiva. Tudo que queremos dizer, que estamos dizendo ao longo dos anos, é que a dor da discriminação, da humilhação, não nos intimidará jamais, que renascemos ainda mais fortes depois de cada morte simbólica ou real decretada pelo racismo.
Há muito avançamos no sentido de objetivar o racismo estrutural e o racismo institucional, superando a compreensão cientificista, culturalista e economicista que tanto contribuiu para visões simplistas, bastante cômodas, sobre um problema gigantesco. Todavia, temos as próprias instituições – família, religião, Parlamento, Executivo, Judiciário, universidade etc. – como os maiores entraves ao enfrentamento do racismo, movidas que são por uma “episteme”, um conhecimento, racista, a partir da qual fazem suas escolhas, encaminham seus processos, operam a realidade social.
A referência maior de todas essas instituições agora é um governo federal fascista que tem no racismo um dos seus pilares, um governo liderado por obscurantistas que reescrevem a história arbitrariamente, chegando ao absurdo de atribuir os quase 400 anos de escravidão no Brasil apenas a comerciantes africanos.
A dissecação do racismo hoje implica o enfrentamento, sobretudo, de instituições que têm passado pela história como imaculadas, “santas”, defensoras dos direitos sociais do povo negro no país: a universidade pública, o Judiciário e o Legislativo. A compreensão clínica da “episteme” que orienta essas instituições, o conhecimento social que produzem, é fundamental para que possamos desvelar seu horizonte ideológico com perspicácia.
Tal compreensão, por sua vez, só pode se processar a partir da narração, por parte dos sujeitos negros, da experiência “com” essas instituições, de uma relação que, num nível aparente, é pautada pelos preceitos constitucionais de isonomia, transparência e imparcialidade. A narração, à medida que implica uma particularização, a ascendência de uma voz e um olhar sobre uma série de fatos, coloca-se na contramão de uma “episteme” de base positivista, regida por uma suposta neutralidade, que ainda sustenta o espaço da ciência, da lei e da política.
A universidade, o Judiciário e o Legislativo são, desde o início do período republicano, um constructo leviatânico, um corpus de verdade tirânica, que alimenta contraditoriamente a continuidade ideológica do escravismo, processo que se acirra, a ponto de chegar ao paroxismo, nos períodos democráticos, quando negros em movimentos organizados, assim como as demais minorias, reivindicam seus direitos sociais com mais contundência. O constructo leviatânico, comandado por uma maioria esmagadora branca, proclama em uníssono a perspectiva acintosa atualizada por Ali Kamel (Não somos racistas, 2006): a nação brasileira não é racista.
O dispositivo narrativo, acionado pelos negros de dentro e de fora das instituições, com ênfase numa relação “com” esferas de poder que se impõem sobre a sociedade, tem a possibilidade de, em primeiro lugar, proporcionar à comunidade negra uma ruptura com o silêncio sobre sua interioridade decretado e administrado pelas instituições. Não interessa às instituições públicas que os negros falem de si mesmos porque essas instituições – a universidade, o Judiciário e o Legislativo em especial – sabem que o si mesmo de um negro, sua interioridade, não é uma dimensão exclusivamente sua, uma questão pessoal, mas um problema coletivo capaz de desestruturar um projeto escravista de nação ao desmascarar as instituições.
O ato capcioso de Ruy Barbosa de mandar queimar documentos sobre a escravidão é o marco formal, digamos, de um silenciamento da comunidade negra que persevera no país de modo muito mais eficaz, cada vez mais, à medida que, dos anos 1960 para cá, recrudesceram as ações afirmativas, as reivindicações, pelos negros, de espaços nas instituições públicas, cotas raciais nas universidades e nos concursos públicos. O negro continua silenciado na universidade pública ainda que, segundo pesquisa recente do IBGE, já seja maioria nesse espaço; continua como assustadora lacuna nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, onde exceções raríssimas apenas escancaram para o mundo o racismo institucional – no Executivo, a presença de um negro ou negra é algo impensável.
Como entender que a maioria numérica de alunos que se declaram negros na universidade não significa, por si só, ruptura do silenciamento da comunidade negra brasileira? O avanço na compreensão desta questão é importante para compreendermos, de um modo renovado, uma questão também complexa suscitada por pesquisa do IBGE: por que o racismo contra negros permanece numa sociedade cuja maioria se declara atualmente negra? Maioria numérica não significa, evidentemente, maioria em termos de poder público, não significa que universitários e população negros, por isso mesmo, detenham poder, sejam sujeitos ordenadores das ações que se praticam na universidade e no país, que, sob a égide da República e da democracia, têm voz decisiva.
Os negros somos, temos sido, mais um caso de quantidade, em termos epistemológicos, que de qualidade no país, e a superação desse quadro injusto só pode se dar com o restabelecimento do elo partido, muitas vezes totalmente perdido, entre sujeitos negros e comunidade negra. O dispositivo narrativo é fundamental ao restabelecimento desse elo que foi partido exatamente por um dispositivo positivista, impulsionado pelo racismo científico do século 19, que é o dispositivo dissertativo, que lida sempre com uma perspectiva abstratizante, idealizadora, genérica, universalizante. À luz de teses fechadas em si mesmas, distanciadas de uma experiência viva da história, o negro é um ser humano, um cidadão dotado de direitos como qualquer outro, o que destoa absurdamente dos negros e negras que realmente somos, dos negros e negras dos quais descendemos, com os quais vivemos, sorrimos, sofremos e morremos.
A emergência dos negros e negras que somos exige a narrativa sobretudo como prova de um crime que as instituições públicas brasileiras cometem não contra um indivíduo, mas contra toda uma comunidade como forma de perpetuar o seu silêncio, sua passividade, seu apagamento. Esse crime consiste numa desqualificação, pela via da desconfiança e do descrédito, dos relatos apresentados por negros e negras sobre sofrimento racial, sob a alegação cínica de que são auto-vitimizações, de que não correspondem à verdade.
As instituições republicanas, obviamente, estão programadas para conter quaisquer perturbações da “ordem e do progresso” principalmente em momentos autoritários, como o atual. Compreende-se facilmente que a aceitação de relatos de racismo institucional, por parte dos donos brancos das instituições, significa investir contra a própria lógica colonialista que estrutura as instituições.
A estereotipação desempenha papel central nessa lógica, como Frantz Fanon (Pele negra, máscaras brancas, 1952) mostrou radicalmente: o sujeito negro, que ousa denunciar o racismo institucional no Brasil, é um mentiroso. Mas a questão, para nós negros e negras vitimados pelo racismo, é: qual a autoridade desses Senhores e Senhoras brancos para nos chamar de mentirosos? O que é a verdade? Qual verdade está em questão? Qual é a verdade deles e a nossa? Narrar o racismo institucional é responder a estas e tantas outras perguntas que só nós, negros e negras, podemos responder.
*Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é Doutor em Literatura Brasileira pela USP, Pós-Doutor em Teoria Literária pela Unicamp e autor, entre outros, de Os acampamentos insustentáveis (Kotter Editorial, 2019). anelitodeoliveira@globomail.com

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