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Milton Hatoum: a volta do narrador desgarrado

O escritor retoma trilogia sobre a ditadura no volume 'Pontos de Fuga', com debate no projeto 'Sempre um Papo', nesta se gunda-feira (2)

Repressão: Romance de Milton Hatoum tem a ditadura militar como pano de fundo
Aos 67 anos, Milton Hatoum anda evitando falar sobre política. O assunto, ele diz, o deixa desgostoso e amargurado. O escritor confessa que prefere mesmo é debater sobre literatura: “É sempre muito mais viva”. O problema é que o tema sensível é inescapável, já que o livro “Pontos de Fuga” (Cia. das Letras, 312 páginas, R$ 49,90) tem como pano de fundo a ditadura militar brasileira em seu momento mais agudo e truculento, nos anos 70.
Para ele, o lançamento do livro em um momento de extrema tensão política foi uma espécie de triste coincidência. “Me assusta ver, hoje, pessoas evocando o AI-5, que foi a coisa mais antidemocrática que existiu”, avalia Hatoum, que participa nesta segunda do projeto Sempre Um Papo, a partir das 19h30, na sala Juvenal Dias do Palácio das Artes.
O livro é o segundo volume da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, iniciada em 2017 com “A Noite de Espera”. No primeiro livro, Martim, o narrador principal, se muda para Brasília após uma separação traumática dos seus pais e conhece Dinah, atriz que se torna seu interesse amoroso, mas cuja relação fica estremecida ao fim da trama.
Na sequência, Hatoum retoma a história de Martim, que está exilado na França. Por meio de cartas, bilhetes e anotações, ele revisita a sua juventude, quando deixa Brasília para ir estudar arquitetura em São Paulo. Na cidade, ele se muda para uma república no bairro Vila Madalena e conhece novos amigos, que vão confrontar seus sonhos com a repressão da época. A trajetória encontra eco na própria vida de Hatoum, que seguiu o mesmo roteiro que o personagem. O autor garante, porém, que a semelhança entre os dois é só essa.
“Há algumas afinidades, mas o paralelismo termina por aí. Em todos os meus livros, existe essa figura do narrador desgarrado, que volta para o seu lugar e não encontra mais o mesmo local da infância ou da juventude”, avalia Hatoum.
Deslocamento
A mudança de local geográfico da história, de Brasília para São Paulo, serve também para mostrar o agravamento do momento dos personagens. Se a capital federal é aberta, planejada e com amplos espaços vazios, a metrópole paulista é uma espécie de antítese, com suas ruas tortas, pessoas amontoadas, prédios imensos e o caos urbano que lhe é particular.
“O esplendor e a miséria de São Paulo tornam mais complexas as vidas dos personagens, porque agora eles estão em outro patamar, cruzaram a linha da sombra e passaram para a maturidade”, avalia Hatoum. O escritor concorda que sua trilogia se enquadre nos chamados “romances de formação”. “É um gênero que eu aprecio muito, sou um leitor inveterado dos romances do tipo do século XIX”, conta Hatoum.
Distanciamento
O arco temporal do livro termina no início dos anos 80, logo após a aprovação da Lei da Anistia, que perdoou torturadores envolvidos na linha-dura e permitiu a volta dos exilados pela repressão.
Na avaliação de Hatoum, porém, a medida foi um equívoco. “Nos outros países da América do Sul, os generais foram julgados, e vários foram presos. Aqui, com a anistia geral, o aparelho repressor do Estado ficou incólume, latente, pronto para voltar – como voltou. Aquilo foi um erro”, critica.
Uma das personagens do livro, inclusive, quando questionada se voltaria ao país após a medida, nega que pretenda retornar e critica o futuro do Brasil. “Um dos amigos diz que ela já pode voltar, e ela responde que não se interessa, já que tem medo de um regresso da ditadura, prevendo que a anistia para todo mundo que participou do aparelho repressor não ia dar certo”, analisa o autor.
Apesar disso, o exílio serve para dar a Martim o distanciamento necessário para analisar a própria história, já que estava fora do seu lugar de origem.
Para Hatoum, a distância é fundamental para esse tipo de reflexão. “O sofrimento do exílio é diferente do expatriado, que tem a opção de voltar. O exílio não tem retorno, às vezes por um longo período, às vezes para a vida. Mas olhar o país de longe é importante para sentir mais profundamente a sua relação com sua própria história e o seu passado”, reflete Hatoum, que só conseguiu escrever “Dois Irmãos” (2000), seu segundo romance, quando deixou Manaus, sua terra natal, e se mudou definitivamente para São Paulo.
“Você se sente mais livre fora do seu lugar. Eu só consegui escrever quando me mudei, em uma espécie de exílio dentro do meu próprio país”, pondera o escritor.
Sempre Um Papo com Milton Hatoum
Segunda (2), às 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro). Entrada franca.

O Tempo

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