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Nova edição de 'Arquipélago Gulag' reapresenta marco da literatura de testemunho

SÃO PAULO
Nenhuma peça de Anton Tchekhov teria chegado ao fim se alguém contasse aos intelectuais tchekhovianos do começo do século 20 que, em menos de 40 anos, o governo russo usaria corriqueiramente técnicas de tortura em inquéritos no país.
O questionamento é do escritor russo Aleksandr Soljenítsyn, que imagina que “todos os heróis teriam ido para o manicômio. Mas não só os heróis de Tchekhov —que pessoa russa normal, no início do século, teria acreditado, teria suportado tamanha calúnia contra o futuro radiante?”.
Essa dúvida aparece em “Arquipélago Gulag”, marco da literatura de testemunho dos campos de trabalhos forçados da antiga União Soviética, onde o autor, que recebeu o Nobel de Literatura em 1970, cumpriu pena de 1945 a 1953. Além dele, estima-se que outros 18 milhões passaram pelos ao menos 476 complexos espalhados pelo país.
“Soljenítsyn se coloca como um intérprete da história da Rússia”, afirma Lucas Simone, historiador que coordenou a tradução da nova edição de “Arquipélago”, publicada neste mês pela editora Carambaia.
A nova tradução brasileira —houve uma primeira na década de 1970 pelo Círculo do Livro— é baseada na edição russa de 2010, revista e abreviada pela companheira do escritor, Natália, a pedido dele. O motivo foi a dificuldade de a obra ser editada considerando-se os três volumes que totalizam 3.000 páginas. Envolvido no projeto, Soljenítsyn morreu em 2008, aos 89 anos, pouco antes da conclusão.
O autor foi parar nos campos de trabalhos forçados após ser condenado, em 1945, por zombar de Stálin em cartas a um camarada no front —corria o último ano da Segunda Guerra Mundial. Nas missivas, o ditador era citado como Chefão, entre outros apelidos.
Soljenítsyn passou primeiro por dois campos nos arredores de Moscou, onde ficou por cinco anos. Em 1950, foi transferido para Ekibastuz, no Cazaquistão, e lá cumpriu os últimos três anos de sua pena trabalhando com pedreiros e depois na fundição.
A palavra “gulag” é um acrônimo em russo para o nome oficial do sistema, Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey, ou Administração Central dos Campos.
No mesmo 1953 em que o escritor foi libertado, o Chefão morreu, dando início a um período de desestalinização do Estado soviético em que o ditador seguinte, Nikita Kruschev, denunciou o culto à personalidade de Stálin e expôs algumas das barbaridades por ele cometidas.
Soljenítsyn aproveitou a janela de relativa abertura e publicou, em 1962, uma novela na revista literária Novi Mir, de Moscou.
A edição com o texto “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch” se esgotou rapidamente, com a avidez dos leitores pelo relato de um dia na vida de um detento dos campos, espécie de mundo paralelo desconhecido da vasta maioria da população soviética.
Outro nome fundamental da literatura do gulag, o escritor Varlam Chalámov, em carta a Soljenítsyn, disse sobre a novela: “Nela tudo é perfeito”. 
O autor de “Arquipélago” chegou a oferecer a Chalámov a coautoria do livro, mas este recusou-a. Preferiu narrar ele mesmo os quase 20 anos que passou nos campos em outra empreitada, os “Contos de Kolimá”, cujo sexto e último volume, “A Luva, ou KR-2”, foi lançado neste ano no Brasil pela editora 34.
“Eles queriam denunciar aquilo, compartilhar aquela experiência com os leitores. Chalámov ficou muito feliz de ver outro escritor escrevendo sobre o mesmo assunto”, afirma Cide Piquet, que editou a saga de Kolimá, região no extremo leste da URSS.
“Kolimá era a maior e mais famosa ilha, o polo da ferocidade daquele impressionante país, o Gulag, geograficamente retalhado como um arquipélago, mas psicologicamente forjado como um continente —um país quase invisível, quase impalpável, que era ocupado pelo povo dos zeks”, escreve Soljenítsyn, citando a gíria usada pelos detentos para se referir a eles mesmos.
“Só que depois a história muda, eles seguem caminhos diferentes”, lembra Piquet. “Chalámov fica na Rússia, não vira um dissidente apesar de tudo o que tinha sofrido. Ao passo que o Soljenítsyn migra, vira um denuncista e se volta contra todo o regime.”
Enquanto Chalámov se mantém leninista e credita o gulag ao stalinismo, Soljenítsyn vai além.
O “Arquipélago” é, na verdade, uma colagem de relatos de 227 indivíduos recebidos pelo autor após a publicação da novela sobre Ivan Deníssovitch. A investigação artística, como ele a chama, do horror dos campos retrocede a 1918. Já no ano seguinte à Revolução, a Tcheká, polícia política constituída por Lênin, sistematizava a perseguição contra opositores.
Prisioneiros dormem em tenda em gulag na Sibéria
Prisioneiros dormem em tenda em gulag na Sibéria (foto sem data) - Reprodução/Library of Congress
As diferenças entre os dois escritores também se acentuam na escrita. Para Chalámov, “o relato em si, da maneira mais crua, dava mais relevo e tornava o livro mais forte”, diz Simone, que versou para o português o volume 3 dos “Contos de Kolimá”. Piquet lembra que Chalámov chegou a acusar Soljenítsyn de falsear a realidade em nome do sucesso literário.
A breve abertura política se fechou assim que Kruschev foi substituído por Leonid Brejnev no comando do Partido Comunista. Para escrever o “Arquipélago” e ao mesmo tempo driblar a KGB, o aparato de espionagem que substituiu a Tcheká, Soljenítsyn se refugiou em um sítio na Estônia nos invernos de 1965-66 e 1966-67.
O pequeno país báltico, apesar de integrar a União Soviética, “parecia a Europa”, nas palavras dele. “Pela primeira vez na vida, fui acometido pela sensação de segurança, como se eu tivesse escapado de vez da maldita vigilância da Segurança do Estado.”
“Arquipélago” foi publicado, porém, somente em 1973 em Paris, três anos depois de Soljenítsyn ser laureado com o Nobel. No ano seguinte, o autor foi preso, destituído da nacionalidade soviética e expulso do país. Passou por Alemanha Ocidental e Suíça até se fixar nos Estados Unidos em 1976.
Só revelou a localização do sítio na Estônia —o Esconderijo, como o chamava—, em 1991, dois anos após a publicação do livro ter sido permitida na já agonizante União Soviética.
Chalámov, considerado “o maior escritor do século 20” pela bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura de 2015, permaneceu na URSS, onde morreu relativamente esquecido em 1982. Sua obra, hoje leitura obrigatória nas escolas russas, vive um momento de redescoberta no Ocidente.
Já Soljenítsyn, além da fama angariada com o Nobel, pôde desfrutar dos louros de denunciar o regime soviético a partir dos Estados Unidos. Mas, para o diretor editorial da Carambaia, Fabiano Curi, houve uma deturpação do papel do escritor.
“Os americanos quiseram colocá-lo numa posição de grande conservador contra o comunismo, é uma visão deturpada do que ele foi. Ele fazia uma crítica ao comunismo, principalmente ao stalinismo, mas jamais foi um conservador ocidental ou liberal como muita gente quis dizer que ele era. Ele tinha uma visão meio nostálgica de uma Rússia tsarista.”
A publicação de “Arquipélago” fecha um 2019 profícuo para aqueles interessados em obras literárias que denunciam o totalitarismo, seja ele de esquerda ou de direita.
Além do volume de encerramento da saga de Kolimá publicado pela 34, o ano teve ainda outros três títulos lançados pela Carambaia.
“Lasca”, do russo Vladímir Zazúbrin, narra o terror dos primeiros anos pós-Revolução através dos olhos de um burocrata da Tcheká na Sibéria.
“O Caso Tuláiev”, do russo Victor Serge, descreve um processo contra um leal membro do Partido tal qual nos expurgos de Stálin. A ensaísta americana Susan Sontag, que classificou o livro como “um romance maravilhoso que não para de ser redescoberto e reesquecido desde sua publicação, em 1947”, afirmou que Serge, em carta de 1933, foi o primeiro a se referir a URSS como um “Estado totalitário”.
E “Kallocaína”, publicado pela sueca Karin Boye em 1940, usa a ascensão do nazismo, observada de perto pela autora durante um período em Berlim, como metáfora para uma ficção futurista.
Curi encara a publicação desses três livros, até então inéditos no Brasil, como uma necessidade. “Até pelo momento em que a gente vive, é uma responsabilidade editorial e pessoal nossa de mostrar, por meio da literatura e da arte, o enfrentamento de discursos autoritários e totalitários.”
Na carta de Chalámov a Soljenítsyn acerca da publicação da novela sobre Ivan Deníssovitch, em 1962, ele menciona uma conversa ocorrida no primeiro encontro dos dois, na Redação da Novi Mir.
O futuro autor de “Kolimá” questionou-o se a novela não funcionaria como um navio quebra-gelo, que abriria o caminho para revelar aos soviéticos e ao mundo a verdade sobre os gulags. De certa forma, assim o foi.
A novela pavimentou o caminho para o Nobel de Soljenítsyn, que por sua vez, amplificou o impacto mundial da publicação de “Arquipélago”, este sim o verdadeiro quebra-gelo.

ARQUIPÉLAGO GULAG

Avaliação:
  • Preço: R$ 139,90 (702 págs.)
  • Autor: Aleksandr Soljenítsyn
  • Editora: Carambaia
  • Tradução: Lucas Simone, Irineu Franco Perpetuo, Francisco de Araújo, Odomiro Fonseca e Rafael Bonavina

Folha de S. Paulo

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